Aberto no governo de José Ivo Sartori (MDB) e pavimentado na gestão de Eduardo Leite (PSDB), o caminho para a aceitação do Rio Grande do Sul ao regime de recuperação fiscal (RRF) tem um obstáculo vultoso perto da linha de chegada. Um movimento que reúne entidades de classe e políticos de diferentes partidos e matizes ideológicos se organiza para tentar impedir a conclusão dos trâmites burocráticos do acordo. Embora o Estado já tenha aderido formalmente ao regime, o plano de recuperação fiscal, que detalha as medidas necessárias para o equilíbrio financeiro, ainda precisa ser homologado pelo governo federal.
Convocada pela seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RS) com apoio da Associação dos Juízes do RS (Ajuris), a mobilização colocou lado a lado sindicatos e partidos de esquerda, que historicamente questionam o pagamento da dívida, e apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, como os pré-candidatos a governador Luis Carlos Heinze (PP) e Onyx Lorenzoni (PL).
O engajamento do bloco conservador ao movimento chama atenção porque os deputados alinhados à direita votaram a favor das medidas de ajuste fiscal propostas por Sartori e Leite, e ajudaram a aprovar, na Assembleia Legislativa, os projetos de lei que viabilizaram a adesão ao regime.
Entretanto, a reação atual, às vésperas do período eleitoral, pode inviabilizar a apreciação de um projeto de lei essencial para a homologação do plano do RRF pelo governo federal, cuja exigência partiu da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.
Trancando a pauta de votações da Assembleia a partir desta terça-feira (3), a proposta ajusta a lei do teto de gastos estadual, incluindo os investimentos por nove anos no teto (atualmente são quatro) e excluindo recursos de emendas parlamentares. Isso fará com que o Rio Grande do Sul passe a atender aos requisitos da lei federal que regulamenta o RRF.
A rejeição da iniciativa pode comprometer a homologação do plano pela União, o que tende a inviabilizar a permanência do Estado no regime. Diante disso, a inclusão na ordem do dia do Legislativo precipitou o uso do projeto como instrumento de pressão por aqueles que resistem à adesão ao RRF.
A pressão do grupo é pela retirada do regime de urgência, o que, na prática, atrasaria a votação ou até inviabilizaria a apreciação em plenário nas próximas semanas, em virtude da proximidade das eleições.
Nesta segunda-feira (2), a OAB promoveu audiência pública de quase três horas para discutir o tema, na qual foram ouvidos servidores públicos, deputados e representantes do governo. O comando da entidade sustenta que a dívida com a União já teria sido quitada pelo Rio Grande do Sul. Na abertura do evento, o presidente da OAB gaúcha, Leonardo Lamachia, lembrou que a instituição ingressou em 2012 com ação no Supremo Tribunal Federal solicitando a revisão dos valores devidos.
— Há, nos autos desta ação, uma perícia que atesta irregularidades nos critérios de atualização da dívida e demonstra que o valor exigido pela União é muito maior do que o efetivamente devido pelo Estado — disse Lamachia.
O laudo mencionado pelo presidente da OAB, que aponta diferenças entre o valor cobrado pela União e o que o Estado deveria pagar, ainda não foi homologado pela relatora do processo, ministra Rosa Weber.
Estiveram no debate os pré-candidatos a governador Beto Albuquerque (PSB), Edegar Pretto (PT) e Pedro Ruas (PSOL) - todos respaldando o entendimento da OAB. Heinze se reuniu com Lamachia e também expressou concordância. Líder da bancada do PL na Assembleia, o deputado Paparico Bacchi fez menção às manifestações recente de Onyx, que também rejeita a adesão ao RRF. A deputada Luciana Genro (PSOL) chegou a sugerir a abertura de uma CPI para analisar o pagamento da dívida.
Ciente da mobilização, o governador Ranolfo Vieira Júnior convocou reunião com deputados da base aliada para o final da tarde desta segunda, a fim conversar sobre a proposta e pedir o apoio dos parlamentares na votação em plenário.
Olho em 2023
Para além do argumento defendido pela OAB, outro fator que mobiliza os postulantes ao Piratini de esquerda e de direita a rejeitarem a adesão é o receio de perder a autonomia sobre decisões administrativas caso assumam o Piratini a partir de 2023.
Isso se deve a um dos instrumentos previstos no regime, que é a criação do Conselho de Supervisão. Formado por um membro indicado pelo Estado, outro pelo Ministério da Economia e um terceiro pelo Tribunal de Contas da União, o colegiado terá total acesso aos dados financeiros do Estado, poderá emitir recomendações e atuará como uma espécie de fiscal para garantir que as regras do plano sejam cumpridas.
O RRF não veda, por exemplo, o reajuste salarial a servidores, mas o governo terá de demonstrar capacidade de financeira de arcar com o custo da reposição ao longo do tempo.
Também caberá ao conselho analisar as compensações financeiras – quando o recurso é retirado de um lugar do orçamento e colocado em outro.
Consequências na mesa
A adesão do Rio Grande do Sul ao regime de recuperação fiscal foi aprovada pela Assembleia Legislativa em fevereiro de 2018, por 30 votos a 18. Em dezembro de 2021, a solicitação foi encaminhada à União e, em janeiro deste ano, a adesão do Estado ao RRF foi aceita pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN).
A partir de então, o Palácio Piratini começou a trabalhar nos detalhes do plano que será apresentado à STN. A aprovação do projeto de lei que está na pauta da Assembleia é fundamental para que o plano seja, mais tarde, homologado pelo presidente da República.
Caso não seja homologado, o governo terá de voltar a pagar integralmente as parcelas da dívida, cujo serviço anual soma aproximadamente R$ 3,5 bilhões. Já pelas regras do RRF, o pagamento seria retomado em uma escadinha crescente de 1/9 da parcela a cada ano.
O procurador-geral do Estado, Eduardo Cunha da Costa, explicou que, atualmente, é a adesão ao RRF que faz com que o Estado esteja sem quitar o passivo mensalmente, não mais a liminar concedida em 2017 pelo Supremo Tribunal Federal que suspendeu o pagamento.
— Se sair do regime, o Estado passará a ficar atrelado às regras anteriores de pagamento. Dentro do RRF, teremos uma economia de R$ 19 bilhões até 2029 — ressaltou o procurador.
Outra medida que depende da homologação do plano de recuperação fiscal é o financiamento de US$ 500 milhões que o Piratini pretende contratar para efetuar o pagamento de precatórios estaduais.