O Supremo Tribunal Federal (STF) já começou a analisar nesta terça-feira (9) a liminar da ministra Rosa Weber que suspendeu os repasses a parlamentares por meio das chamadas emendas de relator. Os ministros Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Edson Fachin já votaram favoráveis à suspensão dos repasses parlamentares feitos por meio de emendas de relator.
Desde a decisão, na última sexta-feira (5), o tema é alvo de embate entre aliados do governo Jair Bolsonaro, oposição e especialistas em contas públicas — e pode alterar os rumos de uma outra discussão controversa: a votação em segundo turno da proposta de emenda à Constituição (PEC) dos precatórios, prevista para o mesmo dia.
A aprovação da PEC é considerada vital pelo Palácio do Planalto por permitir a ampliação do teto de gastos, viabilizar a expansão do Auxílio Brasil (substituto do Bolsa Família) e alavancar a popularidade de Bolsonaro antes das eleições. Foi depois da apreciação inicial desse texto na Câmara, na quarta-feira passada, que a discussão em torno das emendas —identificadas pela sigla RP9 na lei orçamentária — voltou aos holofotes.
Em maio, reportagem do jornal O Estado de S. Paulo apontou o uso do mecanismo pelo governo para financiar demandas da base em troca de apoio político. O instrumento teria liberado R$ 3 bilhões para obras em redutos eleitorais e compra de tratores a preços superfaturados. O governo nega as suspeitas.
Na última semana, às vésperas da votação da PEC, houve uma nova liberação de recursos via RP9 para congressistas (cerca de R$ 1 bilhão). Embora não seja possível comprovar a ligação direta com a votação, a PEC foi aprovada em primeiro turno por margem estreita de votos. O resultado levou o PSOL a entrar com ação no STF contra a suposta manobra. Os partidos Novo, Cidadania e PSB também já haviam solicitado a suspensão das emendas de relator.
Em resposta, Rosa Weber decidiu que nenhum valor seria pago até o plenário da Corte avaliar o assunto e ordenou ampla publicidade, diante da ausência de detalhes sobre os beneficiados. Na decisão, a ministra manifestou “perplexidade” frente à “descoberta de que parcela significativa do orçamento da União esteja sendo ofertada a grupo de parlamentares, mediante distribuição arbitrária”, de forma que “tais congressistas utilizem recursos públicos conforme seus interesses pessoais”.
O desfecho causou indignação na base e no governo, sob o argumento de que o Congresso tem a prerrogativa de decidir onde os recursos devem ser aplicados. A suspensão também foi classificada como interferência no Legislativo — o que levou o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a conversar com o presidente do STF, Luiz Fux.
Vice-líder do governo no Congresso, o senador Marcos Rogério (DEM-RO) publicou um vídeo reforçando o entendimento de que “a decisão representa mais uma flagrante violação do princípio de separação dos poderes” e acusando a esquerda de tentar “boicotar o governo e o Brasil”. Segundo Rogério, “não há segredo (sobre a destinação de recursos de emendas), pelo contrário, há ampla publicidade”.
— Querem criminalizar o processo político legítimo, porque o foco é enfraquecer a representação de quem defende o governo do presidente Bolsonaro — resumiu o senador.
Especialistas criticam falta de transparência
À frente da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco acompanha o orçamento federal há 40 anos e diz que “nunca havia testemunhado nada parecido”. Segundo ele, após o escândalo dos Anões do Orçamento (grupo de congressistas envolvido em fraudes orçamentárias no início dos anos de 1990), houve normatização da Câmara para delimitar o uso dessas emendas e coibir irregularidades.
Ficou definido que elas poderiam ser usadas apenas para ajustes e correções pontuais ou para a adoção de proposições apontadas no parecer preliminar do relator, com aval da Comissão Mista de Orçamento. De 2019 para cá, segundo Castello Branco, essa última hipótese ganhou espaço no governo Bolsonaro, "sem qualquer transparência" — o que chegou a ser cobrado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em junho deste ano.
— A ministra Rosa Weber impediu a continuidade de um jabá orçamentário bilionário e confirmou o que todos sabiam. As emendas de relator são o pior e mais promíscuo instrumento de barganha entre Executivo e Legislativo das últimas décadas, uma espécie de mensalão oficial. Espero que a Corte, ao avaliar a questão, ao menos determine critérios claros de distribuição do dinheiro — diz Castello Branco.
A principal reclamação dos especialistas é de que não é possível saber com precisão o que é levado em conta na escolha dos contemplados nem para a aplicação das verbas. Só se sabe quem recebeu depois que o valor já foi debitado. Essa “opacidade”, na avaliação da gerente de projetos da ONG Transparência Brasil, Marina Atoji, é inadmissível.
— A troca de apoios, até certo ponto, é normal e inerente à atividade política. Não se faz política sem algum tipo de negociação, que eventualmente envolve a liberação de recursos, mas o nível a que isso chegou com as emendas de relator é fora do normal. Não se trata de criminalizar a política, mas de criticar essa negociata sem qualquer controle social sobre algo que é de interesse público — diz Marina.
O que são emendas
- São propostas dos parlamentares voltadas à alocação de recursos públicos com base em compromissos políticos que assumiram no mandato, tanto junto a Estados e municípios quanto a instituições
- Tais emendas, segundo a Agência Senado, podem acrescentar, suprimir ou modificar determinados itens (rubricas) do projeto de Lei Orçamentária Anual enviado pelo Executivo
- Existem quatro tipos de emendas feitas ao orçamento: individuais (de autoria de cada deputado ou senador), de bancada (coletivas, envolvendo demandas estaduais), setoriais (de comissões temáticas do Congresso) e de relator
Emendas de relator
- Identificadas com a sigla RP9 no orçamento geral da União, estão no centro da polêmica. Nesse caso, a definição dos valores e dos beneficiados cabe ao relator do orçamento, que é escolhido a cada ano para fazer um parecer final sobre o tema. A escolha é feita a partir de acertos com os congressistas, sem critérios pré-definidos
- Para os defensores, não há nada de errado nisso, já que os parlamentares são representantes da população e têm entre suas tarefas a missão de ajudar o poder Executivo a definir onde melhor aplicar o recurso público
- Para os críticos, a alternativa vem servindo como moeda de troca entre o governo e o Congresso para garantir apoio político, sem transparência, sem padronização e detalhamento