Anunciada diante de uma multidão de apoiadores nas manifestações de Sete de Setembro, a ameaça do presidente Jair Bolsonaro de descumprir decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) pode abrir caminho para um processo de impeachment. Na avaliação de juristas consultados por GZH, tudo dependerá dos próximos passos do mandatário — se ele de fato fará o que prometeu — e dos desdobramentos políticos do caso.
Ao discursar em Brasília e em São Paulo na última terça-feira (7), o chefe do Executivo atacou o STF e, em especial, o ministro Alexandre de Moraes, que comanda o inquérito dos atos antidemocráticos e das fake news. Em referência ao presidente da Corte, Luiz Fux, Bolsonaro afirmou que “ou o chefe desse poder enquadra o seu ou esse poder pode sofrer aquilo que nós não queremos”. O presidente também prometeu descumprir todas as ordens vindas de Moraes:
— Qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, esse presidente não mais cumprirá.
As declarações tiveram repercussão imediata. No âmbito político, o eventual apoio a um pedido de afastamento de Bolsonaro passou a ser discutido no seio de partidos como PSDB, PSD, Solidariedade e MDB.
Na esfera jurídica, os ministros do STF se reuniram para discutir o assunto e definir o tom do pronunciamento de Fux na sessão desta quarta-feira (8). O magistrado disse que a Corte "jamais aceitará ameaças a sua independência" e que "não tolerará ameaças à autoridade de suas decisões".
— Se o desprezo a decisões judiciais ocorre por iniciativa do chefe de qualquer dos poderes, essa atitude, além de representar um atentado à democracia, configura crime de responsabilidade a ser analisado pelo Congresso Nacional. Em ambiente político maduro, o questionamento a decisões judiciais deve ser realizado não através da desobediência, da desordem, do caos provocado, mas pelos recursos que as vias processuais oferecem. Ninguém, ninguém fechará esta Corte. Nós a manteremos de pé, com suor, perseverança e coragem — declarou Fux.
Com as atenções voltadas ao Distrito Federal, especialistas acompanham o episódio com apreensão e projetam possíveis consequências. Em seu artigo 85, a Carta Magna define como crimes de responsabilidade (passíveis de perda do cargo) atos do presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra o “livre exercício” dos poderes de Estado e “o cumprimento das leis e das decisões judiciais”.
Para o ministro aposentado do STF Marco Aurélio Mello, Bolsonaro ainda não infringiu a norma, mas está a um passo disso, caso leve adiante as palavras externadas na terça-feira. O jurista diz ter ficado impressionado com “a multidão que demonstrou apoio ao presidente” e afirma que o momento é de prudência.
— O que posso dizer é que o presidente extravasou os limites que são esperados da chefia do Executivo brasileiro. Foram discursos de palanque, de candidato. Agora precisamos atuar com temperança e muita ponderação. O ministro Fux deve ter punho de aço e luva de pelica. Por enquanto, não há crime de responsabilidade. Se Bolsonaro realmente deixar de cumprir uma decisão judicial, aí sim teríamos uma crise mais séria. Vamos aguardar — diz Mello.
Professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília (UnB), Paulo Henrique Blair de Oliveira concorda com a avaliação, mas lembra que há algo mais em jogo: o fator político.
— O crime de responsabilidade só ocorre, do ponto de vista estritamente jurídico, quando o ato em si é praticado. Dizer “não vou cumprir” ou “pretendo descumprir” não significa, por si só, uma infração de responsabilidade, até que esse intuito se torne ação. Mas é claro que o julgamento desse tipo de crime é político, e o juízo político a gente nunca sabe para que lado vai. De qualquer forma, anunciar a intenção de desobedecer decisões judiciais é algo muito sério, por isso, a repercussão é gigantesca. Não cabe a quem recebe uma ordem judicial discutir sua legalidade, a não ser através dos recursos próprios. Ou você recorre ou você cumpre. Não tem alternativa — ressalta Oliveira.
Professor titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Eduardo Carrion acrescenta mais elementos ao debate. Carrion lembra que a Lei do Impeachment (nº 1.079, de 1950) amplia e detalha o rol de hipóteses descritas no artigo 85 da Constituição. Também é crime de responsabilidade, segundo essa lei, "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo" e “usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício”.
Em tese, avalia Carrion, Bolsonaro poderia ser enquadrado nesses itens, mas a questão não é simples — em parte, porque a lei é genérica em certos aspectos (afinal, o que é falta de decoro no cargo?) e porque processos desse tipo têm natureza híbrida. Isso significa que, na prática, a decisão é da Câmara e do Senado e, muitas vezes, a conveniência política se sobrepõe a argumentos jurídicos, o que torna difícil qualquer previsão de desfecho.
— A questão é bastante complexa e deve ser analisada com muita cautela. Agora, uma coisa é certa: o nosso presidente está, em grande parte, desrespeitando as demais autoridades e instituições. Está tumultuando a vida política, o que é negativo para o país e para o bem-estar da República — opina Carrion.