Por Dione Kuhn, jornalista e autora do livro "Brizola: Da Legalidade ao Exílio" (RBS Publicações, 2004)
Em agosto de 2001, às vésperas dos 40 anos da Campanha da Legalidade, fiz uma entrevista de dois dias com Leonel Brizola em seu apartamento na Rambla Armenia, em Montevidéu, sua pátria emprestada durante 12 dos 15 anos de exílio. O objetivo era fazer com que o mentor e comandante do último levante armado do Rio Grande do Sul recontasse a operação. Foi um depoimento repleto de detalhes, mas permeado por dois sentimentos: orgulho e inconformismo.
Conversamos sentados à mesa da sala de jantar da residência do edifício Puerto Real, de frente para o Río de la Plata. Brizola fez uma comparação, que tomara emprestada do ex-deputado Francisco Brochado da Rocha (1910-1962), para definir o significado histórico daqueles 13 dias de insurreição:
— Teve o efeito de um relâmpago, mas terminou numa página de bronze da História.
No episódio de 1961, Brizola mostrou toda a sua destreza ao organizar um levante em menos de 24 horas, que tinha por objetivo garantir que o vice-presidente João Goulart assumisse o cargo deixado por Jânio Quadros. Pressentindo uma manobra dos ministros militares para impedir a ascensão de Jango, Brizola foi ágil na tomada de decisões, extrapolando os poderes que a Constituição lhe dava. Enquanto requisitava armas, pneus, combustível, banco de sangue e uma emissora de rádio, o 3º Exército assistia a tudo imobilizado pela indecisão de seu comandante, o general José Machado Lopes. Era o efeito relâmpago a que Brizola se referia 40 anos depois.
Entrevistei também em 2001 o então coronel Álcio da Costa e Silva, que em agosto de 1961 era o chefe do Serviço de Comunicações do Quartel-General do 3º Exército, em Porto Alegre. Filho do general Arthur da Costa e Silva, que viria a ser o segundo presidente da ditadura, Álcio foi testemunha privilegiada dos acontecimentos que se desenrolaram no QG da Rua da Praia. Major na época, foi ele quem recebeu as ordens do general Orlando Geisel, em Brasília, de bombardear o Palácio Piratini se isso fosse necessário para calar Brizola. Álcio foi contundente ao avaliar Machado Lopes, seu superior hierárquico, que depois acabou se engajando ao movimento da Legalidade. E reconheceu a ousadia do governador, o mesmo que havia chamado o seu pai em 1961, em uma conversa ao telefone, de "golpista filho de uma puta":
— A chave de tudo foi o general Machado Lopes não querer tomar uma atitude máscula. Que Deus o tenha, era um grande vovô. A situação era de quem tomasse uma atitude primeiro. Quem tomou foi o Brizola. O general ficou completamente sem ação. Num determinado momento, eu estava presente, ele declarou que não queria ser o responsável pelo derramamento de sangue. Haveria, sim, derramamento de sangue, porque o governador, verdade seja dita, é um homem de peito. Ele estava disposto a tudo. Tanto que ele montou uma operação com a presteza que poucos militares teriam. Fez o diabo.
A crise de 1961 foi provisoriamente contornada com a adoção do parlamentarismo como forma de esvaziar os poderes de João Goulart. Ainda na comparação feita por Brizola, era a Legalidade transformada numa página de bronze da História. Quarenta anos depois, ainda havia resquícios de inconformismo com o desfecho da crise, em especial ao fato de Jango ter aceitado as condições impostas:
— A História nos deu de bandeja uma grande oportunidade que se foi. Eu próprio não tinha consciência do que podia acontecer. Não atuei com a energia que deveria ter atuado no sentido de levar João Goulart a uma atitude que pudesse ser condizente com a época em que vivíamos.
Dois anos e sete meses depois da Legalidade, não havia mais o fator surpresa que foi a renúncia de Jânio Quadros. Brizola, então deputado federal eleito pelo Rio, propôs ao seu cunhado resistência ao golpe. Mas o presidente João Goulart, pela segunda vez, não aceitou. Rumou para o exílio, de onde nunca mais retornaria.
— Se o presidente fosse de outro temperamento, se soubesse que cairíamos em uma ditadura de duas décadas, francamente, teria preferido morrer resistindo — disse o ex-governador na entrevista.
Brizola permaneceu na clandestinidade por um mês, até que se viu obrigado a seguir o destino de seu cunhado. Teve de deixar para trás o projeto de chegar à Presidência. Era como se enterrassem uma etapa de sua vida:
— Eu não fugi do país. Todas as informações levaram a crer que os militares me passariam fogo. Não havia alternativa.
Certo ou errado em suas previsões, o fato é que Brizola encabeçou naquele início de 1964 a lista de inimigos do regime autoritário que se instalava. Seus ataques à cúpula militar foram, ao longo dos anos, o tornando um adversário perigoso aos olhos da caserna.
Brizola pagou um preço alto pela sua audácia. Só pôde retornar ao seu país em 1979, amparado pela Lei da Anistia.