Numa ação de rotina, a Polícia Civil abordou os tripulantes de um Audi no final da tarde de 4 de novembro de 2020, em Sarandi, no norte do Estado. A motorista não tinha habilitação, mas o que despertou suspeitas nos policiais foi a postura do passageiro, que tentava quebrar o próprio telefone celular.
Autorizada pela Justiça, uma varredura no aparelho revelou indícios que demonstrariam envolvimento de uma facção criminosa com a eleição para prefeito no município de 25 mil habitantes. Após 40 dias apurando o caso, o Ministério Público (MP) ingressou em dezembro com Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije) contra a chapa que venceu as eleições, o prefeito Nilton Debastiani e o vice Reinaldo Nicola, ambos do PDT, e outras duas pessoas que seriam ligadas a uma falange com origem no Vale do Sinos. A Justiça de Sarandi recebeu a investigação inicial do MP — pedido de abertura de processo — e mandou citar os quatro réus para apresentação de defesa prévia.
"O partido em questão, especificamente no município de Sarandi, uniu-se a integrantes de facção criminosa conhecidamente voltada ao tráfico de drogas, valendo-se deles com o evidente objetivo de afetar a normalidade e legitimidade do pleito, obtendo proveito eleitoral", escreveu o promotor Caio Isola de Aro ao final das 28 páginas em que descreve as ações do grupo e pede a cassação do diploma de Debastiani e Nicola, além da inelegibilidade por oito anos. Ambos teriam sido beneficiados pelos atos de abuso de poder econômico da organização criminosa.
Segundo o MP, os integrantes da facção são Gilberto Ribeiro Bueno e Guilhermo Beck da Silva. Gilberto, flagrado tentando destruir o celular durante a abordagem policial, foi preso preventivamente em 31 de dezembro, em Palmeira das Missões, por envolvimento com o tráfico de drogas. Diálogos, trocas de mensagens e fotografias expõem a atuação eleitoral da dupla e sua relação com os políticos. Numa das conversas obtidas, eles combinam ações contra os adversários eleitorais.
Durante a investigação, Nicola é citado como interlocutor frequente da chapa junto a Gilberto e Guilhermo. "Inequívoca a devoção de ambos a Nicola, a quem chamam de patrão, chefe ou homem, a indicar superioridade hierárquica", escreve Aro, para quem "o liame deles com o candidato a vice, Reinaldo Nicola é inequívoco". Conforme afirma o promotor, Nicola, que não aparece falando em conversas transcritas na ação, seria inclusive o responsável por pagar a defesa dos integrantes da facção que estariam presos.
Como exemplo do compromisso financeiro, Aro anexou ao processo um áudio que teria sido enviado pelo advogado João Vianei Weschenfelder a Pablo Rupulo, o Babalu, suposto membro da facção, condenado por tráfico de drogas e recolhido ao Presídio Estadual de Sarandi. Na conversa, ocorrida na tarde de 30 de outubro, Vianei estaria cobrando pagamentos atrasados.
"Olha, Pablo, o Nicola não acertou nada comigo. Tu tem que falar com os guris aí, manda eles vir aqui conversar comigo aqui, aqui no escritório pra ver como é que a história tá. Tu fala uma coisa, o Nicola fala outra, o Beto (Gilberto) fala outra. Entendeu? Tem que mandar vim aqui e me dizer o que realmente foi acertado. A juíza ainda não despachou sobre o pedido que nós fizemos. O último, entendeu?"
No mesmo dia, 20 minutos mais tarde, o advogado fala com Gilberto por áudio e cita um suposto acerto de Nicola com Ezequiel Antonio Ignácio da Silva, vulgo "Kel", que seria um dos com líderes da organização criminosa em Sarandi e atualmente está recolhido na Penitenciária Estadual do Jacuí.
Em 26 de outubro, mais uma vez Nicola é citado, desta vez numa conversa entre Babalu e Gilberto, em que o primeiro, preso, pede ajuda do candidato a vice-prefeito para conseguir a liberdade da esposa, também presa por tráfico.
Para o promotor, "o PDT, sobretudo na figura de Reinaldo Nicola, valeu-se de amplo apoio de integrantes de facção criminosa e do tráfico de drogas na campanha eleitoral". Aro afirma que uma foto extraída do celular de Gilberto demonstra "de forma incontestável e emblemática a vinculação do partido eleito com o tráfico de drogas". Na imagem se vê, por cima da bandeira do PDT, porções de drogas prontas para serem fracionadas à venda além de um prato utilizado no fracionamento.
Há ainda vales-compras no valor de R$ 50 que, de acordo com o MP, seriam usados na troca por votos. Os vales foram encontrados na casa de Guilhermo, durante cumprimento de mandado de busca e apreensão. Anotações apreendidas na residência também mostraram uma divisão da cidade em bairros e vilas nas quais supostamente o grupo atua, lista de nomes do que seriam membros do bando e de dívidas de drogas.
Na ação, o MP afirma que o caso extrapola a questão eleitoral, mas que eventuais representações criminais serão tratadas em outra esfera. Ao citar o emprego na campanha eleitoral de "armas de fogo e atemorização coletiva", Aro lembra ainda que "nem mesmo o juridicamente sagrado voto popular pode convalidar tamanha irregularidade".
Contrapontos
O que diz o prefeito de Sarandi, Nilton Debastiani:
"Nunca vi esse Gilberto, não tem nem ideia de quem é. Se votou em mim ou não, ou se pediu voto, não se dizer, porque não o conheço. O Guilhermo eu conheço, é funcionário de uma empresa do Nicola e é um militante nosso, nos ajudou de forma voluntária. Também não tenho nem ideia (da apreensão de vales-compra), que eu saiba não foi feito isso. Eu tenho uma vida aqui em Sarandi, todo mundo me conhece, o Nicola também, e agora por questões políticas... Isso é muito triste para nós, nos machuca bastante. Nós sempre fomos o partido mais fraco, mais popular, e sendo o mais popular, de repente tem o apoio de pessoas que nem quer. Se o tal do Gilberto pediu votos para mim lá na vila, eu não tenho culpa. Em alguém ele vai ter de votar."
O que diz o vice-prefeito Reinaldo Nicola:
"Existe um processo eleitoral, mas nós nem sequer fomos intimados. Conhecemos o assunto pela imprensa e pelas redes sociais. Trata-se de uma questão política local, uma briga para tirar o brilho da nossa vitória. Os nossos advogados estão vendo isso e no andar do processo vamos provar que não tem nada disso. Não tenho relação nenhuma com facção (diz o nome do grupo criminoso), tampouco o Debastiani. Esse tal de Gilberto, eu conheci de vista, ele é genro de um militante nosso. O Guilhermo eu conheço, ele trabalha numa empresa da qual sou sócio e é filiado ao PDT, mas essa acusação é extremamente absurda. Conheço também o João Vianei, mas ele nunca tratou esse assunto comigo (pagamento de defesa de pessoas presas). Se teve diálogos sobre isso ou não, não sei. Sobre esses vales-compra, também fiquei sabendo pelas redes sociais e não tem qualquer vínculo conosco.
O que diz Gilberto Ribeiro Bueno
Zero Hora não conseguiu contato com a defesa de Gilberto Ribeiro Bueno.
O que diz Guilhermo Beck da Silva
Zero Hora ligou várias vezes para a empresa onde ele trabalha, sem conseguir contato.
O que diz João Vianei Weschenfelder
"Eu não sou citado no processo. Se eu for chamado no processo, vou falar no processo. Para a imprensa, não vou falar nada. Não tenho nada para falar."
O que diz o presidente do PDT no Estado, Ciro Simoni
"Estou sabendo dessa notícia por vocês. Eu conheço o Nicola e o Debastiani há muito tempo, 20 anos ou mais, e nunca soube nada de nenhum tipo de ilicitude. O Nicola já foi prefeito lá, foi prefeito de Barra Funda, o Debastiani já foi candidato a prefeito e presidente do partido. Eu militei na região, fiz votos naquela volta toda e nunca soube nada. Mas se existe uma investigação, precisa ser investigada. Fiquei sabendo por ti e vou ligar para lá, para tentar me colocar a par do assunto."