Há 24 anos atuando em eleições, a principal autoridade estadual na fiscalização das candidaturas não têm dúvidas: a campanha eleitoral de 2020 é a mais desafiadora da história recente. Realizada em meio a uma pandemia, com aumento no número de concorrentes e prazos exíguos na justiça eleitoral, a disputa pelo controle dos 497 municípios gaúchos tem sobrecarregado os 164 promotores eleitorais distribuídos pelo Rio Grande do Sul.
Para o coordenador do Gabinete de Assessoramento Eleitoral do Ministério Público, Rodrigo Zilio, essa conjunção de fatores irá resultar em uma insegurança jurídica maior, com o resultado das urnas em muitas cidades ficando à mercê de anulação votos e da realização de nova eleição em 2021.
À frente do Ministério Público Eleitoral (MPE) no Estado e colaborando com a vice-procuradoria-geral eleitoral, em Brasília, Zilio também deparou com outro fenômeno de risco: a infiltração do crime organizado nas eleições. Confira a seguir a entrevista concedida a GZH.
Houve alguma eleição mais desafiadora para o senhor do que essa, em meio a uma pandemia?
Não. Com outra perspectiva, a primeira eleição com urnas eletrônica, em 1996, foi desafiadora. Mas nada como neste ano. Temos a pandemia e a introdução do processo judicial eletrônico. É a primeira que a Justiça Eleitoral de todo o país trabalha exclusivamente com peças digitais e o sistema não é perfeito. Já tínhamos o processo eletrônico em 2018, mas eram 27 eleições estaduais e a de presidente. Dessa vez, são 5,5 mil eleições municipais. O sistema acarretou atrasos.
Que tipos de atrasos?
Numa eleição municipal como esta, até 20 dias antes da eleições, ou seja, hoje (segunda-feira, 26), todos os registros de candidaturas e impugnações deveriam ter sido julgados pelo juiz no município e pelo TRE. Isso não será cumprido. Não temos todos os casos julgados nem mesmo na primeira instância. No TRE, temos 30%, 40%. Isso é muito ruim porque se alguém em situação irregular insistir na candidatura e só lá na frente disserem que é inelegível, os votos serão anulados. Se é um prefeito que ganha eleição, precisa de nova eleição.
Essa situação não gera insegurança no eleitor?
Sim, muitas eleições no Estado ficarão sub judice. Neste ano, mais do que nos outros, há uma tendência de haver uma insegurança jurídica maior sobre a validade dos votos do eleitor, em função desse atraso nos julgamentos.
Qual a razão para essa demora na análise dos registros e impugnações?
Temos três instâncias e um calendário eleitoral reduzido. Antes, os candidatos apresentavam registro em 5 julho. Pela lei de 2015, agora é em 15 agosto. A campanha caiu pela metade, jogando os registros para muito perto da eleição. São só 40 dias entre o requerimento e o julgamento final que a lei exige, passando por juiz, TRE e TSE. Isso é impossível. Temos 33 mil registros no Estado e 550 mil no país. Perdemos 40 dias para julgar e o prejuízo é do eleitor. E isso tudo não tem nada a ver com a pandemia.
Quantas candidaturas o MPE impugnou no Estado?
Não temos esse dado fechado, até porque uma candidatura pode ser impugnada pelo MP, mas também por candidatos, partidos e coligações. Mas, em resumo, teremos mais impugnações e mais insegurança jurídica. Tudo por causa do encurtamento do calendário eleitoral, o prazo exíguo para julgamentos, as três instâncias de decisão, o aumento no número de candidatos e a demora que houve no processamento dos registros na Justiça Eleitoral.
N0 dia a dia da campanha, vocês têm visto muitas irregularidades?
A campanha de rua diminuiu muito e a internet ocupa mais espaço. A pandemia também contribuiu para essa migração para o ambiente virtual. Mas as irregularidades não mudaram muito: compra de votos, distribuição de cestas básicas, uso da máquina.
Vocês têm investigado a disseminação de fake news?
A desinformação chegou pela primeira vez à Justiça Eleitoral em 2018 e na época talvez não estivéssemos tão atentos. Existe agora de novo e é grave, mas a proporção é maior nas eleições gerais. A internet é livre, mas não é um ambiente de irresponsabilidade e impunidade. Há possibilidade de multa e até pedido de cassação do registro em caso de abuso do poder digital.
A democracia pressupõe regras e uma das regras atuais é o distanciamento social
Temos casos de violência, com registro de ameaças, coação, agressão?
Existem casos de o crime organizado estar se aproximando de alguns candidatos. Isso está no radar dos órgãos DE fiscalização e é uma novidade em relação a eleições passadas. Mas não vou comentar mais para não atrapalhar as investigações.
Há muito descumprimento às regras sanitárias da pandemia?
Essa é a questão jurídica mais complexa, porque existe intersecção entre as normais eleitorais e as sanitárias. Não há, por exemplo, proibição de comício, mas há previsão de que haja distanciamento entre as pessoas. Então pode não haver irregularidade eleitoral, mas um ilícito sanitário se houver aglomerações e o candidato responder por isso na Justiça comum.
Os candidatos têm ido às ruas, cercados por cabos eleitorais, apertando mão e abraçando eleitores. Vocês têm recebido muita denúncia?
Temos. Esse tipo de campanha acaba sendo inevitável e vai muito da conscientização dos partidos, dos candidatos. E dos eleitores também, de se afastar. A democracia pressupõe regras e uma das regras atuais é o distanciamento social.
Na eleição passada houve fraudes no uso do fundo eleitoral com candidaturas laranjas. Isso está se repetindo?
Aconteceu muito em 2018 e só aqui no Rio Grande do Sul há mais de cem investigações criminais envolvendo candidatos. Lógico que continua no nosso radar em 2020, mas só pode ser verificado lá na frente, após a prestação de contas.
A legislação vem reduzindo o calendário eleitoral e os tipos de propaganda. O resultado é a perpetuação de uma classe dominante no poder
Praticamente não se vê mais campanha de rua e neste ano a pandemia retirou ainda mais pulsão eleitoral das pessoas e dos ambientes. De que forma isso afeta a democracia?
A legislação vem, ao longo do tempo, reduzindo o calendário eleitoral e os tipos de propaganda. Começou tirando as placas dos postes e foi diminuindo, diminuindo até se chegar ao cúmulo que a pessoa só pode colocar uma bandeirinha de meio metro quadrado na janela da residência. O dono da casa não pode nem pintar um muro, por exemplo. O pretexto é reduzir o custo das campanhas, o que é uma meia verdade, pois há R$ 3 bilhões em recursos públicos somando os fundos partidário e eleitoral. O resultado é a perpetuação de uma classe dominante no poder e a diminuição da possibilidade de oxigenação na política.