Conteúdo verificado: postagem publicada pelo site Gazeta Brasil indicando que o governo federal liberou R$ 12 milhões para família poder comprar um remédio para tratar criança com atrofia muscular espinhal (AME).
É enganosa uma postagem do site Gazeta Brasil em sua página no Facebook a respeito de um repasse feito pelo governo federal à família de uma garota que sofre de atrofia muscular espinhal (AME) e que precisava de um tratamento médico avaliado em R$ 12 milhões. O repasse, de fato, foi feito, mas ocorreu após ordem judicial da qual o governo recorreu e foi derrotado, o que foi omitido no texto. A omissão da informação levou muitos leitores a interpretarem o repasse como uma ação voluntária da União, o que não é verdade.
O recurso do governo foi apresentado ao Supremo Tribunal Federal (STF) e tinha o objetivo de não realizar o pagamento. Em um primeiro momento, o STF acatou os argumentos da União, mas posteriormente voltou atrás na decisão e decidiu que o governo deveria pagar o tratamento para a menina. A primeira decisão favorável à menina é de março deste ano, mas por conta dos recursos, o dinheiro só foi transferido entre o final de agosto e o início de setembro.
Procurada, a Gazeta Brasil afirmou que a matéria teve como base uma outra reportagem, de título parecido, feita pelo jornal Metrópoles e que não suprimiu a informação sobre a decisão judicial. O objeto da verificação feita pelo Comprova é, no entanto, a publicação no Facebook do portal, que não faz referência às decisões judiciais. Devido a isso, várias pessoas acreditaram se tratar de um ato de caridade direto do presidente Jair Bolsonaro, como pode ser observado na imagem abaixo.
Como verificamos?
Iniciamos a verificação por meio de uma pesquisa no Google sobre o caso da menina. Assim, chegamos a diversas reportagens, entre elas as publicadas pelo jornal Correio Braziliense e pelo site G1 do Distrito Federal.
Baseados nas informações encontradas, acessamos a página do Fundo Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde. Nela, é possível verificar todos os repasses feitos pelo governo federal. Assim, localizamos as datas dos repasses feitos à família.
No detalhamento dessas transferências, consta o número do processo judicial. Em consulta ao site do Supremo Tribunal Federal (STF), instância em que o processo também tramitou, o Comprova conseguiu identificar o advogado da família. Os telefones dele foram obtidos por meio de uma pesquisa no Cadastro Nacional dos Advogados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Em contato com o advogado, conseguimos os números de todos os processos em primeira e segunda instâncias, acessíveis em consulta à ferramenta Processo Judicial Eletrônico (PJe) do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). No Sistema Eletrônico de Informações, também é possível consultar o processo administrativo do Ministério da Saúde.
Verificação
Realização do pagamento
Segundo informações divulgadas em reportagens, o pagamento dos R$ 12 milhões havia sido realizado em dois depósitos: um de cerca de R$ 10 milhões e outro de aproximadamente R$ 2 milhões. O primeiro datava no mês de agosto deste ano.
Com esses recortes, por meio da consulta a repasses por dia na página do Fundo Nacional de Saúde, foi possível verificar que o primeiro repasse do Ministério da Saúde à família aconteceu no dia 17 de agosto, na quantia de R$ 10.008.250. Já o segundo ocorreu no dia 25 de agosto, no valor de R$ 1.991.750.
A família confirmou o recebimento dos valores. Em entrevista ao Projeto Comprova, a servidora pública Deilla Macedo Lima, mãe da criança, contou que “esses depósitos foram efetuados em conta judicial no mês de agosto; e em setembro, logo em seguida, transferiram para a minha conta corrente”.
O valor do remédio
Considerado o medicamento mais caro do mundo, o Zolgensma foi registrado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no dia 17 de agosto deste ano. Segundo o próprio laboratório Novartis, que fabrica a droga, este é o “primeiro passo para a comercialização” no Brasil. Porém, a aprovação de preço na Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed) deve acontecer apenas nos próximos meses.
Atualmente, o remédio injetável é fabricado nos Estados Unidos e comercializado no próprio país, além de Japão e Europa. Para justificar o alto valor de compra, o fabricante esclareceu que o método “reflete décadas de pesquisas científicas, investimentos em cadeia logística e manufatura em larga escala”. Bem como “custos diretos e indiretos com capacitação de centros de referência, hospitais e profissionais de saúde”.
No entanto, a cifra milionária já foi abordada e criticada em artigo publicado pela Fundação Oswaldo Cruz, em 27 de maio do ano passado. Coordenador do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (NAF/ENSP), Jorge Bermudez afirmou que “cada vez mais” as grandes empresas farmacêuticas estabelecem “preços fictícios”, havendo uma “diferença muito grande entre custos e preços”.
A doença
De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a atrofia muscular espinhal (AME) é uma doença genética que interfere na produção de uma proteína pelo organismo. Sem ela, os neurônios motores morrem e os pacientes vão perdendo a capacidade de se mover e utilizar os músculos. Isso afeta os movimentos, incluindo a mastigação e a respiração.
Degenerativa, a doença rara tem incidência de um caso para cada 6 mil a 11 mil nascidos vivos. Conforme a própria bula do remédio Zolgensma, ele precisa ser aplicado em crianças com até dois anos. A menina que receberá o tratamento está, atualmente, com um ano e 10 meses, de acordo com o próprio pai.
A página de publicação
Procurada, a Gazeta Brasil afirmou que a matéria em questão teve como base a reportagem de título parecido, feita pelo jornal Metrópoles, e que ela não é enganosa, porque consta a informação da Justiça. Porém, diferentemente do Metrópoles, o texto cita a decisão judicial apenas no final do terceiro parágrafo, em vez da primeira linha da reportagem. A informação relativa às decisões judiciais também não aparece na publicação da Gazeta Brasil no Facebook.
Por que investigamos?
Em sua terceira fase, o Projeto Comprova verifica conteúdos relacionados à covid-19 e a políticas públicas do governo federal. Informações falsas ou enganosas como a checada acima são prejudiciais à sociedade e contribuem para uma interpretação distorcida da realidade.
Comentários do post mostram que internautas entenderam como uma “boa ação” o pagamento dos R$ 12 milhões à família, em vez de compreenderem que se tratava do cumprimento de decisão judicial da qual o governo chegou a recorrer. Até a tarde de 17 de setembro, a notícia tinha 300 interações no site, além de quase 7 mil compartilhamentos nas redes sociais, incluindo Facebook e Twitter.
A ação judicial aberta pela família e o recurso apresentado pelo governo são parte de um fenômeno conhecido como “judicialização da saúde”. Ele se dá quando os cidadãos acionam judicialmente, ou um plano de saúde ou a União, para obter acesso a tratamentos, algumas vezes de alto custo.
Quando o governo é obrigado a financiar determinados tratamentos, como o deste caso, os recursos precisam sair de outros pontos do orçamento, criando uma oposição entre direitos individuais e direitos coletivos. De acordo com um levantamento feito em 2019 pelo Insper para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre 2009 e 2017 o número de processos em primeira instância relacionados à saúde aumentou 198%.
Enganoso, para o Projeto Comprova, é um conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Projeto Comprova
Depois de um período especial de 75 dias dedicado exclusivamente à verificação de conteúdos suspeitos sobre o coronavírus e a covid-19, o Projeto Comprova começou em 10 de junho a terceira fase de suas operações de combate à desinformação e a conteúdos enganosos na internet. O objetivo da iniciativa é expandir a disseminação das informações verdadeiras.
Nesta terceira etapa, o Comprova vai retomar o monitoramento e a verificação de conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e eleições municipais, além de continuar investigando boatos sobre a pandemia de covid-19. Fazem parte da coalizão do Comprova veículos impressos, de rádio, de TV e digitais de grande alcance.
Este conteúdo foi investigado por A Gazeta, Estadão e Piauí e verificado por Folha, GZH, Jornal do Commércio, SBT e UOL.
É possível enviar sugestões de conteúdos duvidosos e que podem ser verificados por meio do site e por WhatsApp (11 97795-0022). GZH publicará conteúdos checados pela iniciativa. O Comprova tem patrocínio de Google News Initiative (GNI), Facebook Journalism Project, First Draft News e WhatsApp e apoio da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). A coordenação é da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).