Vinte e três anos após a aprovação da emenda constitucional que permitiu a reeleição de ocupantes do Executivo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso declarou estar arrependido da iniciativa. Em artigo publicado neste final de semana, ele diz ser preferível um mandato único com cinco anos de duração.
O tucano admitiu o erro ao observar que os presidentes acabam governados pela ambição de permanecer no poder. Fernando Henrique cita o dilema do ministro da Economia, Paulo Guedes, diante do quadro recessivo da economia. Segundo o tucano, Guedes sabe que precisa induzir um corte de gastos brutal, mas “terá de fazer a vontade do presidente” Jair Bolsonaro, cuja agenda pública há meses flerta com a campanha antecipada ao segundo mandato.
“Cabe aqui um ‘mea-culpa’. Permiti, e por fim aceitei, o instituto da reeleição (...). Devo reconhecer que historicamente foi um erro”, conclui o ex-presidente. Promulgada pelo Congresso em 1997, a emenda da reeleição foi um dos episódios mais polêmicos da crônica política nacional. Quatro meses após a aprovação do texto pela Câmara, a Folha de S. Paulo publicou reportagem denunciando a compra de votos por R$ 200 mil.
Em gravação obtida pelo jornal, o então deputado Ronivon Santiago, do PFL (atual DEM), relatava a um amigo que ele e outros quatro colegas teriam recebido a propina dos então governadores Orleir Cameli, do Acre, e Amazonino Mendes, do Amazonas. Santiago relatou ter recebido R$ 100 mil em dinheiro no dia da votação, 28 de janeiro, e o restante por meio de uma empreiteira que mantinha contrato com o governo do Acre. Os governadores sempre negaram participação no esquema.
A Folha também obteve confissão gravada do então deputado João Maia. Oito dias após a publicação da reportagem, ambos renunciaram aos mandatos, enviando ofícios idênticos ao então presidente da Câmara, Michel Temer (MDB). Nos bastidores da Casa, era corriqueiro o comentário de que dezenas de parlamentares teriam vendido seus votos.
A oposição tentou instalar uma CPI, mas o governo federal mobilizou sua base e impediu a aprovação do requerimento. No dia seguinte à renúncia dos deputados, dois expoentes do MDB, partido que havia sido fundamental para sepultar a CPI, se tornaram ministros de Estado: Eliseu Padilha (Transportes) e Iris Rezende (Justiça).
Os outros três deputados citados acabaram absolvidos num procedimento preliminar na Comissão de Constituição e Justiça, e o procurador-geral da República na época, Geraldo Brindeiro, ignorou os pedidos para que o caso fosse remetido ao Supremo Tribunal Federal.
Com a operaçã0-abafa, a corrupção confessa jamais foi investigada. O único chamado à Polícia Federal para prestar esclarecimentos foi o autor da reportagem, o jornalista Fernando Rodrigues. Seu depoimento foi colhido em 2001, quatro anos após a denúncia.
Três semanas após a publicação da matéria, o Senado levou apenas nove minutos para chancelar a posição dos deputados e também aprovou a emenda da reeleição. Foram 62 votos a favor e 14 contrários.
– Vou me retirar dessa sessão. Não vou votar. Não vou participar de um ato que violenta a Constituição – justificou o então senador Pedro Simon (MDB-RS), um dos poucos a se abster.
Beneficiado pela emenda, Fernando Henrique foi o primeiro presidente reeleito da história do Brasil. Em 1998, ele venceu a eleição no primeiro turno, com 53% dos votos. O tucano sempre negou qualquer participação na compra de apoio à reeleição, mas acabaria admitindo a existência do esquema 10 anos depois.
– Houve compra de votos? Provavelmente. Foi feita pelo governo federal? Não foi. Pelo PSDB: não foi. Por mim, muito menos – disse em entrevista à Folha em 2007.
No artigo publicado neste final de semana, o ex-presidente lembra a acusação e diz que “de pouco vale desmentir”. Ao cabo, Fernando Henrique conclui que a possibilidade de renovação do mandato atrapalha a condução do governo, sobretudo a tomada de decisões mais amargas, e reveste seus atos de campanha eleitoral. “Tudo o que o presidente fizer será visto pelas mídias, como é natural, como atos preparatórios da reeleição. Sejam ou não”, argumenta.