O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta sexta-feira (2) que não falou "nada de mais" sobre o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Em entrevista, ele disse que enviará ao ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), cópias das declarações em que criticou o militante de esquerda Fernando Augusto Santa Crus de Oliveira, desaparecido na ditadura militar, e sugeriu que ele foi morto por companheiros de militância — o que contraria o exposto em documentos oficiais, que atestam a responsabilidade do Estado no caso.
Nesta semana, Bolsonaro citou o pai do presidente da entidade para reclamar sobre a sua atuação na investigação do caso Adélio Bispo, autor de facada desferida contra o então candidato na campanha eleitoral. O presidente disse saber como o pai de Santa Cruz desapareceu durante a ditadura.
— Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco, e veio desaparecer no Rio de Janeiro — disse o presidente na segunda-feira (29).
Mais tarde, diante da repercussão negativa de sua fala, Bolsonaro fez uma transmissão em vídeo em que afirmou, enquanto tinha o cabelo cortado, que o pai de Santa Cruz foi morto pelo grupo de esquerda do qual fazia parte, e não pelos militares.
— O pessoal da Ação Popular ficaram (sic) estupefatos, né? Como é que pode este cara do Recife vir se encontrar conosco aqui no Rio de Janeiro, o contato não seria com ele, seria com a cúpula no Recife. E eles resolveram sumir com o pai do Santa Cruz, essa é a informação que eu tive na época — argumentou o presidente.
Na quinta-feira (1º), Barroso encaminhou uma interpelação a Bolsonaro para que ele esclareça "eventuais ambiguidades ou dubiedades" na crítica ao militante de esquerda, que integrava a Ação Libertadora Nacional (ALN).
— Mesmo eu não sendo obrigado (a prestar esclarecimentos), eu presto. Não falei nada de mais. Eu vou entregar os vídeos, fazer a degravação e mandar — afirmou.
— O que eu falei de mais para vocês? Me responda. O que tive conhecimento na época. Eu ofendi o pai dele? Não ofendi o pai dele — disse.
O presidente lamentou todas as mortes ocorridas durante a ditadura militar, tanto na esquerda quanto na direita, e disse que nada disso teria ocorrido se não houvesse a "vontade de implantar o comunismo no Brasil".
— É uma verdade. A verdade dói, machuca. Agora, eu lamento todas as mortes que tiveram dos dois lados — disse.
Barroso deu um prazo de 15 dias para Bolsonaro responder à interpelação. A decisão atendeu a pedido de Felipe, que, de acordo com o despacho, se sentiu pessoalmente ofendido e entendeu que houve crime de calúnia contra a memória de seu pai.
Fala de Bolsonaro contradiz documentos oficiais
Os documentos, estudos e relatos acerca do tema contradizem a afirmação de Bolsonaro. Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, pai do atual presidente da OAB, militava contra o regime militar quando era estudante. Ele desapareceu em 1974. Em documento enviado à família, a Comissão da Verdade de Pernambuco apresentou um documento atribuído à Aeronáutica comprovando a prisão dele. O registro o classificava como membro da Ação Popular Marxista-Leninista (APML).
"Já na década de 1990, o Relatório da Marinha enviado ao então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, em dezembro de 1993, informava que Fernando teria sido preso no dia 23 de fevereiro de 1974, sendo considerado desaparecido desde então", acrescenta o relatório.
A Comissão Nacional da Verdade elencou duas hipóteses para o caso do pai do atual presidente da OAB. A primeira é a de que, depois de preso no Rio, ele foi levado para o DOI-Codi em São Paulo.
"Essa indicação do DOI-Codi/SP como possível órgão responsável pelo desaparecimento de Fernando e Eduardo aponta para a possibilidade de os corpos dos dois militantes terem sido encaminhados para sepultamento como indigentes no Cemitério Dom Bosco, em Perus", diz o texto.
Outra possibilidade levantada é a de que Fernando e seu amigo foram encaminhados para a chamada Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), "e seus corpos levados posteriormente para incineração em uma usina de açúcar".
"Fernando de Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho permanecem desaparecidos até hoje", conclui o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Já depoimentos do ex-analista do Destacamento de Operações de Informação — Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) Marival Chaves afirmam que Fernando Santa Cruz foi assassinado. Ele teria sido morto junto com outros ex-integrantes da organização de esquerda Ação Popular (AP), numa operação executada por conhecidos militares da repressão, como o então coronel do Exército Paulo Malhães (1937-2014).