Passou longe da unanimidade a alteração de interpretação na Lei da Ficha Limpa, concluída pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 4 de outubro do ano passado. Por seis votos favoráveis e cinco contrários, a Corte decidiu estender os efeitos da norma a condenados antes de 2010.
O início do julgamento foi em 2015. O relator do processo, ministro Ricardo Lewandowski, se posicionou contrariamente a qualquer mudança, sendo acompanhado por Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Celso de Mello e Marco Aurélio Mello.
Luiz Fux abriu voto divergente, com apoio de Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Dias Toffoli. Coube à presidente da Corte, Cármen Lúcia, o desempate a favor da ampliação dos efeitos da legislação.
Para o ex-presidente do STF Carlos Ayres Britto, a decisão foi correta. O ministro aposentado diz que é possível considerar como inelegíveis os políticos condenados antes de a lei entrar em vigor. Para ele, a matéria está ligada aos direitos políticos e não aos individuais, o que autoriza o Judiciário a aplicar sanções mesmo antes de a regra vigorar:
Não se trata de pena ou castigo. Quem tem uma vida eticamente reprovável incide em uma causa de inelegibilidade. Não pode ser eleito.
CARLOS AYRES BRITTO
Ministro aposentado e ex-presidente do STF
– Não se trata de pena ou castigo. Quem tem uma vida eticamente reprovável incide em uma causa de inelegibilidade. Não pode ser eleito.
Regra impõe situações “absurdas”, diz magno
Ayres Britto afirma que o candidato já não é mais apenas um indivíduo, mas alguém que quer representar a coletividade. Por isso, argumenta que, “para ser porta-voz de todo um povo, tem de ter a vida passada limpa”.
Opinião oposta tem o jurista Luiz Magno, que é um dos fundadores da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep). Ele avalia que o direito político se encaixa dentro daqueles fundamentais e, por isso, o indivíduo não pode sofrer restrições por meio de leis que passem a valer retroativamente, em período anterior à promulgação.
Existe uma garantia do direito constitucional, que é a impossibilidade de retroação maléfica de leis restritivas.
LUIZ MAGNO
Jurista e um dos fundadores da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep)
– Existe uma garantia do direito constitucional, que é a impossibilidade de retroação maléfica de leis restritivas – diz Magno.
Crítico à Lei da Ficha Limpa, acrescenta que a regra impõe uma série de situações “absurdas”, como a inelegibilidade pela demissão de servidor público após processo disciplinar, e que, restringindo o número de candidatos pela regra, o Estado retira da população “a responsabilidade pelas suas escolhas”.
Deputados articulam proposta para barrar alteração
Criada em 2010 por meio de um projeto de iniciativa popular, que recebeu mais de 1,3 milhão de assinaturas, a Lei da Ficha Limpa prevê 14 situações que tornam políticos inelegíveis por oito anos, que vão desde a compra de votos até crimes comuns.
Temos mais de cem pessoas investigadas no Congresso. É óbvio que para elas não interessa uma lei mais dura.
GIL CASTELLO BRANCO
Economista e fundador da ONG Contas Abertas
Com o entendimento do STF de estender os efeitos para condenados antes de 2010, deputados passaram a intensificar articulações para derrubar a decisão, a partir de projeto protocolado apenas seis dias depois do aumento no rigor da legislação.
Até a decisão do STF, pendências com a Justiça anteriores a 2010 eram regidas exclusivamente pela lei complementar 64, de 1990, que previa punição de apenas três anos fora da vida pública. Parlamentares alegam que a mudança poderá fazer com que políticos eleitos em 2014 e 2016 percam os mandatos. São casos de condenados antes de 2010, que ficaram fora da política por três anos e, após o prazo, voltaram a concorrer. Se o entendimento do STF for mantido, a punição a eles seria ampliada e, com isso, poderia haver a cassação dos registros de candidatura.
Confira abaixo entrevistas com dois deputados que divergem sobre o tema.
“Ou mudamos a Constituição ou a lei”, diz Marquezelli
Autor do projeto que visa a limitar aplicação da Lei da Ficha Limpa, o deputado federal Nelson Marquezelli (PTB-SP) diz que objetivo é dar “segurança jurídica”.
Quais são os motivos que o levaram a protocolar o projeto que muda os prazos de inelegibilidade?
Segurança jurídica. A votação do Supremo ficou empatada em 5 a 5. Os argumentos colocados pelo relator, ministro Ricardo Lewandowski, me convenceram. Era preciso acrescentar à Ficha Limpa esse projeto que fiz, para que ela tenha durabilidade a vida toda. Defendo a Ficha Limpa. Acho que temos de mantê-la cada vez mais forte. Não tem contestação jurídica. Desse jeito, obedecendo ao artigo 5º da Constituição, fazendo a aprovação desse projeto, teremos a certeza de que a Ficha Limpa será eterna. Pode até ser melhorada, se Deus quiser.
O senhor se incomoda quando as pessoas dizem que seu projeto é corporativista?
Não, porque não é verdade. Quem lê o projeto verá que não tem nada disso. Isso não é verdade. É preconceito.
O senhor acredita que a sociedade apoia o projeto?
Tenho certeza que a Câmara deve apoiar, que representa a sociedade brasileira. A Constituição diz que nenhuma lei pode retroagir para prejudicar o réu. Nenhuma. Não tem exceção. Ou mudamos a Constituição ou mudamos a Lei da Ficha Limpa.
A busca por moralização na política leva a extremos?
O que entendo é que temos de fazer alguns adendos na Ficha Limpa. Esse é obrigatório pela Constituição e por causa de cinco votos que teve no Supremo. Temos de qualificar a Ficha Limpa. O candidato com ficha suja tem na legislação brasileira condições para segurá-lo. É só não efetivar a matrícula da sua candidatura. A legislação brasileira já proíbe isso. Por que vou retroagir, se a própria legislação já proíbe o candidato que não tem Ficha Limpa?
Político que se envolve com compra de votos ou improbidade tem recuperação?
Não só o partido não deve aceitar sua candidatura, como o Tribunal Regional Eleitoral. Basta isso. No PTB, lançamos candidatos comprometidos com a ética. Espero que os outros partidos façam a mesma coisa. O Tribunal Eleitoral de cada Estado deve segurar aqueles que não têm conduta ética.
“É a limpeza que se deseja na política”, diz Delgado
Contrário ao projeto que busca limitar o alcance da Lei da Ficha Limpa, o deputado Júlio Delgado (PSB-MG) diz que é o momento de os parlamentares fazerem a “limpeza que a sociedade pretende fazer nas urnas”.
Por que o senhor é contra o projeto que visa limitar a Lei da Ficha Limpa?
Porque o Supremo decidiu que ela atinge quem entrou na eleição desde a aprovação do projeto para cá e em fatos pretéritos. Ela deve ter esse valor independentemente de quem vai atingir. Portanto, temos uma posição contra esse projeto.
Há apoio da sociedade a esse projeto?
A sociedade não quer mais aqueles que tenham praticado atos atentatórios e que estejam cumprindo mandato. É uma forma de fazermos a limpeza que a sociedade pretende fazer nas urnas. A sociedade tem a opção nas urnas, mas, como esses políticos já entraram quando a lei não vigorava e acabaram sendo beneficiados pela ficha limpa porque ainda não estava em vigor, é momento de fazermos com que esses não possam participar do processo eleitoral. Eles ficam inelegíveis por oito anos.
O senhor acredita que a busca por moralização na política leva a extremos?
Acredito que isso é possível. Nesse momento, infelizmente, alguns vão pagar pelos pecadores, mesmo que tenham cometido alguns atos atentatórios que sejam crimes menores com relação à Ficha Limpa, mas que os tornem inelegíveis em julgamento em segunda instância. É uma questão da vida pública. Aqui, eles não participarão mais.
Na sua opinião, um político que se envolve com compra de votos ou improbidade tem recuperação?
Acho que tem, mas, na realidade política em que vivemos no Brasil, é difícil acreditar que isso aconteça. Por isso, é importante que, mesmo com quem tenha cometido atos anteriores ou de 2010 para cá, a gente possa fazer a limpeza que se deseja na política.
A lei pode ser qualificada?
Temos de aprimorá-la sempre, como a questão de tornar crimes mais graves, como os hediondos, sem progressão de regime. Isso tudo evolui para a gente endurecer regras para que as pessoas que participem da política estejam comprometidas com a ética, a transparência e o decoro, e não apenas respondendo e se justificando por erros enquanto exerceram cargos públicos.