Anunciada como mecanismo de democracia participativa, a Consulta Popular, processo de votação pelo qual a população pode decidir o destino de parte dos investimentos do orçamento estadual para o ano seguinte, recebeu somente metade (45,7%) dos recursos previstos para o programa na última década. Entre 2007 e 2016, o Piratini prometeu, em valores corrigidos, R$ 1,964 bilhão para os projetos escolhidos como prioridade pelos cidadãos. Só R$ 897,4 milhões chegaram às iniciativas eleitas.
Nesse período, o governo cumpriu o compromisso apenas em dois anos, quando inclusive repassou quantias superiores às previstas ao saldar passivos anteriores. Nos demais, os montantes permaneceram abaixo do estabelecido inicialmente no orçamento. Assim, os valores simplesmente caducaram, e os municípios nunca receberam os recursos prometidos.
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Para o secretário de Planejamento, Governança e Gestão do Estado, Carlos Búrigo, dois fatores explicam a divergência entre orçamento e execução. Inicialmente, está a previsão de repasses superior à realidade financeira das contas públicas – situação que ocorre independentemente de partido, verificada em quatro diferentes gestões. O segundo aspecto está na deficiência de apresentação de projetos pelos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (Coredes), responsáveis pela organização e discussão da Consulta Popular, dentro dos prazos exigidos.
Foi o que ocorreu em 2016, quando o governo destinou R$ 60,9 milhões do orçamento para as iniciativas vencedoras da votação. No entanto, somente R$ 49,1 milhões estão aptos para ser pagos nos próximos meses – os outros R$ 11,8 milhões foram perdidos pelo programa em razão da ausência de projetos técnicos adequados.
– Historicamente, ocorreu uma série de questões que fizeram com que, mesmo votados, os projetos não fossem realizados e os valores nunca chegassem às regiões. Na própria secretaria, muitas vezes se perdiam as iniciativas em meio a uma multidão de rubricas orçamentárias. Não sendo pago no ano vigente, esse valor morre. Assim, acumulou-se esse passivo enorme – explica o diretor do Departamento da Consulta Popular, José Reovaldo Oltramari.
Em 2015, iniciou-se um controle mais efetivo da apresentação de projetos dos programas contemplados pela votação, segundo o diretor. Mas a iniciativa começou a surtir efeito somente no ano passado, quando 80,7% do valor orçado foi, de fato, pago.
– Todos os anos, tentamos renegociar com o governo para resgatar algumas demandas, mas é muito complicado. Na prática, o governo não tem mais a obrigação de realizar o pagamento porque não pode liquidar esses valores após o fechamento do ano orçamentário. Esse é um grande problema – admite o presidente do Fórum dos Coredes, Paulo Roberto Fernandes.
Professor da Unisinos, o cientista político Bruno Lima Rocha considera iniciativas de consulta à população positivas. Entretanto, avalia que o descaso com o pagamento dos compromissos torna o programa mais marketing político do que mecanismo de participação dos cidadãos:
– O que assusta é a efetividade do projeto, que, em tese, distribui o poder de consulta à população, porque não há uma dotação orçamentária relevante. Assim, só serve para melhorar a imagem do Executivo.
Criada em 1998, no governo Antônio Britto (à época no PMDB), como uma resposta ao bem-sucedido Orçamento Participativo, implantado em Porto Alegre, em 1989, pelo então prefeito Olívio Dutra (PT), a Consulta Popular também encontra na pouca capacidade de investimentos do Estado outro entrave para avançar. A partir de 2016, os valores previstos no orçamento caíram drasticamente. Búrigo justifica a queda como uma estratégia do atual governo de trabalhar com valores "realistas":
– Durante vários anos, colocou-se no orçamento um valor alto que, depois, não se pagava. Criavam-se pendências, com municípios exigindo verbas a receber e comunidades cobrando obras que haviam sido eleitas por elas. Agora, optamos por uma quantia dentro da nossa realidade. É melhor dizer que o recurso disponível é pequeno e realmente cumprir com o pagamento – avalia Búrigo.
Para 2018, R$ 60 milhões estão no orçamento
Na mais recente Consulta Popular, com votação encerrada há uma semana, o Piratini destinou R$ 60 milhões do orçamento de 2018 para os quase cem programas vencedores nas 10 áreas escolhidas pelos cidadãos. O valor equivale a um quarto da parcela da dívida com a União deveria pagar mensalmente e a somente 5% da folha dos servidores. Diante do orçamento miúdo, a consulta, que tem como propósito a redução das desigualdades regionais, acaba servindo unicamente para iniciativas pontuais e obras de pequeno porte.
– Historicamente, trabalhávamos com valores na faixa dos R$ 200 milhões, mas às vezes nem a metade era paga. O atual governo disse que disponibilizaria menos recursos, mas se comprometeu a quitar todos os compromissos que fossem contemplados nas votações. Acabamos aceitando a proposta, mesmo que o valor represente muito menos do que desejamos – diz o presidente do Fórum dos Coredes, Paulo Roberto Fernandes.
Entre os projetos eleitos em 2016, que estão sendo pagos neste ano, aparece a construção de uma praça em Cachoeirinha, a compra de estrutura turística para Gravataí, Santo Antônio da Patrulha e Dois Irmãos, a melhoria em estradas vicinais em Caraá e a aquisição de equipamentos para hospitais de Cachoeira do Sul, Santo Antônio da Patrulha, Cachoeirinha, Gravataí e Santa Rosa. Cada investimento varia entre R$ 426 mil e R$ 806 mil.
Envolvido na Consulta Popular desde a sua criação, o diretor do programa, José Reovaldo Oltramari, admite que o orçamento deveria ser maior. Mas, na sua avaliação, o processo acaba criando outros benefícios:
– A consulta não faz um hospital ser construído, mas provoca o agente público para construí-lo. Depois, a cada votação, a instituição passa a receber equipamentos para qualificá-lo. É claro que o recurso é pequeno, mas produz resultados diante da realidade das comunidades. O principal objetivo é provocar o governo e estimular que mais agentes locais envolvam-se.
Professor do Departamento de Ciência Política da UFRGS, Alfredo Alejandro Giuliano, que estuda mecanismos de participação popular há mais de uma década, considera a Consulta Popular um importante instrumento de "democratização" do Estado. Ao mostrar preocupação com a queda de recursos destinados à iniciativa, aponta que a eficácia passa pela concretização das demandas votadas:
– A execução só é eficiente quando a votação representa uma forma efetiva de ampliação da participação dos cidadãos no processo de deliberação sobre o uso do dinheiro público. Assim, a alocação de recursos aos projetos é vital para que o processo realmente tenha sentido e não seja uma simples formalidade ou uma forma velada de publicidade governamental.
Para Giuliano, chama a atenção que os valores atuais são muito inferiores aos destinados pelos governos anteriores:
– É difícil ficar satisfeito com a liberação do montante em questão. Deduzo que o pequeno valor não é devido à falta de recursos, mas à escolha das prioridades para a alocação dos recursos.
Como funciona o programa
-Por meio da Consulta Popular, instituída no Rio Grande do Sul em 1998, a população pode definir parte dos investimentos e serviços que estarão no orçamento estadual.
-O governo informa o montante que será submetido à votação pela população. Esse valor, que para 2018 é de R$ 60 milhões, é distribuído entre as 28 regiões do Estado, definidas por meio dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (Coredes).
-Todo ano, os projetos são discutidos em assembleias públicas nas regiões, que definem uma lista de votação para cada região. No documento, constam programas e áreas nos quais os cidadãos podem votar como prioritárias para a destinação de recursos.
-Desde 2016, a eleição é exclusivamente online. A votação ocorre pelo site, pelo aplicativo ou via mensagem de texto.
-Neste ano, o prazo para a população participar se encerrou há uma semana, em 3 de agosto.
-Agora, os resultados estão sendo remetidos para a Secretaria do Planejamento e Desenvolvimento Regional, responsável por incluir os programas vencedores no orçamento de 2018.
-Nos próximos meses, os Coredes deverão apresentar os projetos finalizados para que, no próximo ano, recebam os valores contemplados pela consulta.