O cientista político Luiz Felipe d’Avila tem uma missão: preparar novos gestores públicos em meio a uma crise institucional e de credibilidade que assola o país. Ele é o mentor do Centro de Liderança Pública (CLP), organização sem fins lucrativos dedicada a formar líderes e promover o que define como "mudanças transformadoras na política brasileira". Antes, fundara a Editora D’Avila, que criou revistas como República, Gula e BRAVO! – esta última vendida para a Abril em 2002. D’Avila é também autor de vários livros de história e política, como Dona Veridiana, Os Virtuosos e Caráter e Liderança. Nesta entrevista, defende o voto distrital e prega amplas reformas no país.
O senhor defende as reformas trabalhista, previdenciária e política como essenciais. Mas como se dariam e qual delas é a mais importante?
As três são muito importantes. A trabalhista permitirá que o Brasil resgate pelo menos parte da sua competitividade. A legislação trabalhista atual impede a contratação de muitas pessoas que estão fora do mercado de trabalho. Hoje, há 43 milhões de trabalhadores com carteira assinada e 60 milhões que trabalham ou na informalidade, ou em pequenos negócios, microempresas etc. E há 14 milhões de desempregados. Uma reforma é fundamental para incorporar cada vez mais gente na economia formal, o que ajuda a gerar empregos e melhora o crédito. E, também, para combater o desemprego, qualificar os trabalhadores e diminuir a oneração das empresas.
A reforma trabalhista é a mais importante de todas?
Não. Ela é a mais importante para combater o desemprego, que é algo que afeta muito a percepção do eleitor. Imagina o eleitor indo votar com uma situação de recessão e estando desempregado. Ele vota com raiva, só quer saber de eleger um salvador da pátria. Isso ajuda a fomentar o populismo e a demagogia. Distorce a percepção das pessoas. Mas a reforma da Previdência também é fundamental. É impossível sanar as contas do Estado com a situação previdenciária atual. Hoje, a gente arrecada 37% do PIB (Produto Interno Bruto, a riqueza do país) e gasta 36% com despesas correntes do Estado, investindo apenas 1%. Não tem jeito de o Brasil voltar a crescer com o investimento público tão baixo. Se você não está com as finanças de casa em ordem, como é que vai fazer planos?
O momento que vivemos, com muita corrupção, não leva a classe média a pensar que está pagando uma conta que não é dela?
Sim. Parece que sempre cai no colo do setor produtivo. Precisamos ver a urgência do momento e explicar as medidas que devem ser tomadas, mas o Estado tem de fazer a sua parte. Por que o governo federal não suspende o aumento prometido aos funcionários públicos? Tem mais de R$ 50 bilhões pendurados aí. Temos de olhar o lado da despesa. É muito fácil olhar o lado da receita e penalizar o setor produtivo, que já está sofrendo com a recessão. É preciso equiparar o jogo, e, para isso, é necessário discutir o custo-benefício. As pessoas têm de entender. Sacrificar sempre o setor produtivo é mais fácil do que enfrentar realmente essa história de o governo federal dar aumentos escalonados para o funcionalismo público.
O senhor está dizendo que há privilégios?
Há reajustes dos salários do funcionalismo público, que começaram a ser pagos no ano passado e vão até 2019, que são muito acima da inflação. Enquanto isso, o trabalhador da iniciativa privada não consegue sequer compensar a inflação com seus ganhos. Não dá para pagar uma conta assim, com impacto de mais de R$ 50 bilhões. Só se aumentam impostos. Trata-se apenas de um atalho para resolver os problemas emergenciais de caixa.
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E a reforma política?
Também é importante para aproximar o representante do eleitor, porque o que passa a desconfiança entre a sociedade e o governo é a distância entre a população e seus representantes. E o sistema eleitoral brasileiro contribui muito para isso. Essa fórmula das eleições proporcionais é um descalabro, porque distorce inclusive a vontade do eleitor. Tem o caso da vereadora de Santa Catarina que, em 2014, foi eleita sem nenhum voto (Gilmara Elisa Ricardo, do PPS, no município de Rio dos Cedros). Nem ela votou nela mesma. E o sistema permite que se eleja. Porque ela pertencia a uma coligação, preenchia a cota de mulheres dessa coligação, e foi feito o acordo de que haveria alternância entre titular e suplente. Também não é possível que um deputado eleito com 2 mil votos entre porque havia um puxador de votos na coligação dele, enquanto outro candidato com 50 mil, 80 mil votos fique de fora. Isso precisa terminar, e o jeito de terminar é o voto distrital. Com ele, você pega o número de cadeiras do seu Estado e o divide pelo número de distritos. Esses distritos precisam ser contíguos e seguir critérios técnicos, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Aí, cada deputado só poderá disputar a eleição no seu distrito. Isso permite a renovação da política. Você imagina uma pessoa muito conhecida na política hoje tendo de encarar o jovem que fez trabalho importante em um distrito. Ali vai haver uma competição acirrada. Além disso, pode-se reduzir brutalmente o custo do financiamento de campanha – porque você vai focar só no distrito e não percorrer o Estado inteiro atrás de voto. E, uma vez eleito esse candidato, você pode segui-lo melhor, fiscalizá-lo, cobrá-lo. Ele estará mais próximo. Trata-se de um regime que aumenta o que chamo de "responsabilização".
Em meio a um momento tão delicado em termos institucionais, com a classe política em descrédito, as reformas devem ser feitas por partes ou em conjunto?
Em partes. Se três ou quatro grandes reformas forem votadas simultaneamente, pode-se acabar fazendo concessões e distorções grandes. Já votaram a trabalhista, ok. Termina-se, encerra-se e vai-se para a previdenciária, e depois a política. Se votássemos essas três juntas, acabaria dando-se ênfase a uma delas, e as outras não passariam ou passariam de forma muito diluída.
Deve-se votar a reforma previdenciária, tão polêmica, neste momento turbulento?
Tenho uma sugestão para que seja votada uma reforma previdenciária possível de ser aprovada. É contornar um problema, que é o seguinte: ao não separar previdência pública da privada, criou-se uma narrativa confusa, especialmente em relação às regras de transição. Então, quem está aposentado fica com medo de perder a aposentadoria, quem vai se aposentar não sabe qual a regra, se vai receber ou não. E aí criou-se um mal-estar na sociedade, que poluiu o jogo. Os parlamentares não conseguem mais explicar isso aos seus eleitores, e começa a haver pressão do corporativismo, misturada a uma incompreensão da sociedade. Pois então, qual é a alternativa? Dividir as previdências pública e privada e só tratar da pública. Esqueçamos a privada – e, mesmo assim, estaremos atacando o setor onde estão 80% da despesa. Onde está o problema. São aposentadorias de juízes, parlamentares, funcionários, professores. Devido ao princípio da paridade e da integralidade, a cada vez que você dá aumento para um professor ou um juiz na ativa, precisa dar também aos aposentados. O grande problema da Previdência brasileira é a pública, e não a privada, que tem um déficit pequeno. Se você apresenta uma emenda da reforma previdenciária dizendo que vamos tratar apenas da pública, fica fácil de explicar às pessoas. Temos de acabar com os privilégios da previdência no setor público, é isso. Os funcionários públicos têm de se aposentar pelas mesmas regras do setor privado, com o teto do INSS, que é de R$ 5,3 mil. E quem quiser mais terá de fazer aposentadoria complementar, como todos os outros brasileiros.
Nesse caso, a aceitação das pessoas será maior, mesmo perto das eleições de 2018?
Lógico. É o que o eleitor quer escutar. Pô, finalmente estão acabando com os privilégios do setor público que nós custeamos com a carga tributária do país, uma das maiores do mundo. Cada vez que surge um problema no setor público, o que se faz é aumentar impostos – mantendo privilégios. Como é que pode se achar justo a aposentadoria de um juiz ser 25 vezes maior do que a de um funcionário do setor privado? E a de um parlamentar ser 15 vezes maior? Como você sustenta aumento de 3%, 4% acima da inflação no setor público, e ainda com estabilidade, enquanto no setor privado, além de não se repor a inflação, corre-se o risco de perder o emprego? Esse jogo é muito desigual.
Os políticos atuais têm condições de demonstrar isso com credibilidade para o eleitor?
Sim. Imagina um político dizendo para o eleitor que está cortando na própria carne, que está cortando o próprio benefício. Vai ser aplaudido. Isso ajudaria os próprios políticos a reconstruírem sua imagem.
No curso do CLP, vocês ensinam isso? Ensinam a fazer e explicar por que está fazendo?
Sim, isso é importante. Na questão pública, as pessoas ficam muito focadas no impacto das medidas tomadas. Mas, no fundo, o que importa é o custo político. Quando você percebe a relação entre impacto e custo político, tem uma visão realista das brigas que os políticos podem ou não a comprar. Para administrar as votações, é preciso ter foco. É por isso que dividir as reformas é importante: é um jeito de diluir o custo político.
É possível contemplar políticos de todos os espectros ideológicos?
Esse é o objetivo dos cursos que damos. Temos classes pequenas, entre 35 e 50 alunos, raramente mais do que isso. Todos eles estão na gestão pública – municipal, estadual ou federal. Todos trazem problemas concretos. E trocam experiências, o que faz com que muitas das soluções surjam dos debates entre os alunos. Ajudamos os líderes públicos a resolverem problemas concretos de forma objetiva. A encontrar os reais problemas, sejam de gestão, que demandam mudanças de processo ou de treinamento de pessoas, sejam de capacitação, de criação de indicadores para mensurar resultados de políticas públicas, ou aqueles que exijam mudanças de valor, de comportamento e de cultura.
Há pessoas de diferentes tendências políticas frequentando os cursos?
Sim. Em oito anos, tivemos mais de 5 mil alunos. Trabalhamos com 19 Estados e 52 prefeituras. Por exemplo, no seminário que fizemos com prefeitos recém-eleitos, do Rio Grande do Sul participaram o (governador José Ivo) Sartori, que era prefeito de Caxias do Sul, o Jairo Jorge, à época prefeito de Canoas, o Cezar Schirmer, de Santa Maria (atual secretário de Segurança do Estado), e o Eduardo Leite, de Pelotas. A troca entre representantes tão diferentes é enriquecedora. A discussão dos reais problemas, sem discursos político-ideológicos, com foco em resolver questões fundamentais da gestão pública, cria uma relação interessante entre eles que vai além do curso.
Políticos demonstram interesse em se livrar dos próprios preconceitos?
Tentamos fazer isso. O curso me mostrou como há pessoas talentosas, com vontade de fazer o certo, que estão na política pela virtude da política, e não para se perpetuar no poder ou defender direitos corporativistas. Isso me anima. Lamento que a grande imprensa não dê valor a essas pessoas, por estar muito focada em Brasília, nas fofocas. Tem gente fazendo coisas importantes na gestão pública brasileira, nos Estados e nos municípios. E são pessoas que não têm reconhecimento. É essa turma que vai mudar o Brasil de verdade, e não a que está em Brasília. Os que estão em Brasília logo, logo estarão botando o pijama e indo para casa.
O político precisa ter uma estrutura emocional e uma convicção para perseverar em algumas medidas que eventualmente não pareçam palatáveis. Como você trabalha com isso?
Você precisa ter convicção. Precisa saber que está correndo risco e entender que, de fato, vale a pena correr esse risco. Ninguém corre risco em coisas pequenas, mas sim em grandes causas. Isso é fundamental para mudar o Brasil. Quando criei o CLP, eu pensava: o Brasil vai viver eternamente a síndrome do voo da galinha, com pequenos espasmos de crescimento e grandes períodos de crises e estagnações se continuarmos cultivando a ilusão de que populistas e demagogos são mais importantes do que instituições. O nosso problema é que acreditamos mais em populistas e demagogos do que nas instituições. Temos de fortalecer as instituições, e fortalecer as instituições é despersonalizar o poder. Despersonalizar o poder é ir contra a cultura brasileira, mas é o que temos de fazer.
Por trás de tudo isso, não há também um problema de comunicação do político? O político não precisa se comunicar melhor e explicar o que está fazendo?
Lógico. Parte da nossa crise política é de narrativa. Não conseguimos explicar às pessoas três coisas: a primeira é qual é o problema. Segundo: como esse problema afeta a vida das pessoas. Por exemplo, você quer deixar aos seus filhos uma dívida ou um país melhor? O terceiro ponto é que você deve dar às pessoas uma tarefa: mande carta para o seu parlamentar, mobilize seus amigos... Assim, as pessoas se sentem corresponsáveis pela mudança. Se a narrativa não compreender esses três ingredientes, as pessoas não vão se mobilizar, vão continuar na sua eterna passividade.
Esses políticos que fazem o curso às vezes telefonam para conversar, trocar ideias, Fazer alguma consulta?
Sim. No CLP, há uma sessão de coaching, de conversas, com no máximo 10 sessões. E é interessante que são conversas abertas. Quem tem coragem de dizer verdades a um governador, a um prefeito, a um secretário? Geralmente, estes têm outros interesses e tentam atenuar as críticas, amenizá-las. Então, a visão que acaba tendo da realidade é um pouco distorcida. Nosso coaching é uma conversa franca, aberta, baseada em dados e fatos. Não aconselhamos, só discutimos dados e fatos para ele chegar à conclusão sobre o que tem de fazer.
O governador Sartori já lhe telefonou para conversar sobre alguma decisão?
Conversamos quando ele era prefeito de Caxias. Como governador, não. Com o Jairo Jorge, tive muitas conversas. Inclusive eu o trouxe para dar aulas no CLP, para contar a experiência dele, como se posicionou diante dos desafios.
O CLP parece apostar na política. Como vocês veem as defesas que eventualmente surgem da ditadura?
Nós precisamos valorizar o político, a política e as instituições, porque não temos outra alternativa. Com essa crise no Executivo federal, temos de valorizar o Parlamento. É o Parlamento que tem de resgatar a agenda. As reformas dependem muito do Congresso, e não do presidente, por exemplo. E essa é uma enorme oportunidade para o Parlamento resgatar sua importância, sua relevância perante a opinião pública.