Um dos maiores especialistas em ética no país, Roberto Romano encontra razões históricas para a atual quadra da política brasileira. Para o professor, nossa frágil democracia ainda guarda traços do absolutismo europeu de 500 anos atrás, uma herança nefasta sustentada na prática do compadrio e do uso do Estado para benefícios pessoais.
Passados cinco séculos, a deterioração dos homens públicos espelha, na visão de Romano, uma sociedade ainda desigual, cujos espasmos de inconformismo não são suficientes para conter os desmandos de quem detém o poder. A seguir, uma síntese da entrevista.
Temos algumas das mais altas autoridades da República descumprindo decisões judiciais. Há uma desobediência oficial no país?
Esta é a natureza do Estado brasileiro. Quando fomos descobertos, o absolutismo dominava em Portugal, com uma centralização do poder nas mãos do rei, um controle grave da burguesia, do setor econômico e do Parlamento, que era onde eles se reuniam para pedir favores ao rei, mais ou menos como acontece hoje em Brasília. As pessoas acham engraçada a história do Pero Vaz de Caminha, que na Carta do Descobrimento pede um emprego para um parente. Aquilo era a realidade cotidiana. O rei, para poder garantir o seu poder, comprava os nobres e os sacerdotes. Fazia isso distribuindo cargos, subsídios, isenção de impostos. A regra que nos definiu enquanto terra habitada desde 1500 é essa. Quem tem acesso ao cofre, às normas legais e à força física, mente, se recusa a prestar contas e persegue quem se levanta.
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Mais de 500 anos depois, como mudar essa realidade?
É um trabalho muito complicado, de mudança de natureza do Estado. Temos de chegar ao mínimo da democracia. Falam na democracia brasileira, mas nunca a vejo, só se for embaixo da cama, no penico. Quando o Renan (Calheiros) se recusa a receber um oficial de Justiça, está dizendo que é superior. O mesmo acontece quando o presidente da República se diz injuriado por perguntas feitas por policiais federais.
O foro privilegiado estimula esse comportamento?
Quando falam em prerrogativa de foro, vem a desculpa vagabunda de muitos colegas meus, de juristas, de que é para evitar uma enxurrada de processos. Ora, não quer receber processos, não quer entrar num campo de luta, fica em casa tomando cerveja e comendo churrasco. A vida pública é de tensões e interesses contrariados. Se você entrou no jogo, tem de prestar contas. Aqui, desde um vereador mais insignificante até o Michel Temer se julgam superiores ao povo. Me admira muito que o Ministério Público, que se diz democrático, aceite uma coisa dessas.
Depois de tantos escândalos de corrupção, dois presidentes alvo de impeachments, a Lava-Jato prendendo políticos e empresários, agora não era hora da guinada ética no país?
Durante o século 19 inteiro, ideias liberais foram esmagadas pela força física do poder central. Mantiveram a unidade nacional, mas estabeleceu-se o princípio de que o operador do Estado é superior à cidadania. Essa é a longa tradição das nossas autoridades. Não passamos pelas inovações trazidas pelas revoluções modernas, como a accountability (prestação de contas). É muito difícil modificar 500 anos de contrarrevolução. Toda vez que um colega começa aquela conversinha de que as instituições estão funcionando normalmente, vou ao banheiro e vomito.
Os protestos de 2013 e, depois, as manifestações pelo impeachment mostram uma sociedade civil mobilizada. Agora parece que há uma anestesia geral no povo. O que está acontecendo?
O problema é que temos uma sociedade desigual, não democrática, que espelha perfeitamente o Estado Brasileiro. Uma das suas características é a prática do favor. Isso há no mundo inteiro, mas você tem obstáculos à universalização absoluta do favor. O político brasileiro faz favor para si, para sua família, seus amigos e inimigos, porque ele vai cobrar esse favor mais adiante. Vivemos sempre dessa rede de favores e privilégios. Nos Estados Unidos, quando você briga com alguém, a pessoa pergunta: quem diabo você pensa que é?. Aqui, é "com quem você pensa que está falando?".
Não há esperança de mudança com uma nova geração de políticos?
Esses dias, vi o Temer na TV. Atrás dele estava o José Sarney. É muito sintomático que um governante do estilo do Sarney, que impôs seu ferrete à população do Maranhão, esteja patrocinando esse governo, como ajudou a segurar o governo do Lula. Há uma falta de lideranças no mundo inteiro. Veja quem são: Trump, Putin. Aqui, é de rir e chorar ao mesmo tempo. Quais lideranças nós temos? Ciro Gomes, com sua fala debochada e agressiva se colocando no papel de juiz do bem e do mal, que é de centro, de direita, de esquerda e de alto? Geraldo Alckmin e João Doria querem deixar Temer no poder para possibilitar que um deles ganhe as eleições em 2018. O Estado que se dane, a economia que arrebente, queremos é ficar no palácio. As outras lideranças atingem, no máximo, o plano regional. Como conduzir partidos democraticamente se não temos lideranças democráticas?
Sem essas lideranças, é possível projetar um futuro melhor?
A massa de 2013 teve um calor enorme, mas não aproveitamos essa energia para mudanças no Estado. Estamos naquela situação, no meio do mar revolto, sem pessoas sábias nem gabaritadas. Se você escapou da tempestade, não sabe se é por gambiarra ou acaso. Estamos soçobrando. Mas não sou um desiludido. Só na eternidade não há mudança. No tempo e na história, é sempre possível mudar.