Depois de 16 anos de decisões controversas, um dos casos mais polêmicos da economia gaúcha teve fim. O governo do Rio Grande do Sul e a Ford entraram em acordo, que foi homologado na terça-feira pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), estabelecendo o pagamento de R$ 216 milhões pela empresa aos cofres públicos gaúchos.
O processo, ajuizado em fevereiro de 2000 (veja todo o histórico no fim da reportagem), se refere à indenização pedida pela então gestão de Olívio Dutra (PT) devido à desistência da empresa de instalar uma fábrica de automóveis em Guaíba, na Região Metropolitana. A Ford tinha recebido a primeira das parcelas relativas a um financiamento de R$ 210 milhões estabelecido com o Banrisul, além de o governo ter investido na área que receberia a montadora, quando decidiu levar a fábrica para a Bahia.
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Em primeira instância, a montadora deveria pagar mais de R$ 160 milhões ao Estado (em valores que, se corrigidos, poderiam passar da casa do bilhão). Após sofrer revés no Tribunal de Justiça, que chegou a estipular pagamento de R$ 22,7 milhões (não corrigidos), o caso foi parar no STJ no final do ano passado. O governo de José Ivo Sartori (PMDB), decidiu, então, negociar diretamente com a Ford.
Iniciado no começo deste ano, o acordo foi fechado após um parecer favorável da Procuradoria-Geral do Estado (PGE). Segundo a assessoria da Secretaria da Fazenda, embora o valor não seja o ideal, estaria em patamar aceitável, considerando que poderia ser mais baixo ou demorar ainda mais. Levado ao STJ, o ministro Mauro Campbell Marques homologou o acordo na última terça-feira.
A data do pagamento, que deve ser parcelado, ainda não foi acordada. Procurada, a assessoria de imprensa da Ford ainda não comentou o caso. Já o governo deve se manifestar oficialmente através de nota.
O que a Fazenda adiantou é que os R$ 216 milhões, assim como a possível antecipação de créditos relativos a benefícios fiscais concedidos à GM e o repasse do governo federal referente a parte da multa do programa de repatriação de valores, devem ser revertidos para pagamento da folha do funcionalismo.
O governador do Estado na época do rompimento do acordo, Olívio Dutra (PT), disse que a decisão fez justiça à conduta da administração petista na época:
– A Ford teria que pagar mais de R$ 1 bilhão se o processo prosseguisse, mas como o governo está com necessidade, vão pagar uma parte muito pequena do total que deveriam ter pago por romper o contrato. Fica demonstrado que o nosso governo teve uma conduta correta, em defesa dos interesses coletivos do Rio Grande. O dinheiro público é escasso e não pode se facilitar a transferência de recursos para uma grande empresa, uma multinacional, deixando de lado os micro empresários e os servidores públicos. Essa foi a nossa postura. Fomos duramente criticados na época, fomos até achincalhados, mas a nossa postura foi correta.
Uma história de polêmicas
O contrato
Em 1998, o governo Antônio Britto (PMDB) assinou com a Ford um contrato para instalação de uma fábrica de automóveis em Guaíba, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Também foi assinado financiamento com o Banco do Estado do Rio Grande do Sul (Banrisul) disponibilizando para a empresa a quantia de R$ 210 milhões, com o objetivo de aportar os recursos necessários ao projeto. Pelo acordado, o dinheiro seria liberado aos poucos, mediante prestação de contas das etapas.
O rompimento
Após o pagamento da primeira parcela, de R$ 42 milhões, já no ano de 1999 e na gestão de Olívio Dutra (PT), a Ford se retirou do negócio alegando que o Estado estava em atraso no pagamento da segunda parcela e, também, motivos de ordem política com o novo governo que assumia. O Estado, no entanto, alegou à época que a empresa não estava cumprindo o acordo, além de não concordar com as cláusulas assinadas na gestão anterior. Com isso, a Ford acabou trocando o Rio Grande do Sul pela Bahia em um processo que envolveu, entre outras decisões, vantagens concedidas à empresa para se instalar em Camaçari.
Governo entra na Justiça
Em fevereiro de 2000, o Estado do Rio Grande do Sul ajuizou uma ação contra a Ford, postulando o reconhecimento da nulidade de algumas cláusulas contratuais ou, sucessivamente, da inadimplência contratual da Ford.
Ação popular
Também foi protocolada, em fevereiro de 2003, pelo advogado Wladimir dos Santos Vargas, uma ação popular contra representantes do Estado, do município de Guaíba, do Banrisul e da Ford, com objetivo de invalidar o contrato e pagar pelas perdas e danos causados pelo caso.
Decisão de 1º grau
Em dezembro de 2009, a juíza Lilian Cristiane Siman, da 5° Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, condenou a empresa a pagar uma indenização ao governo do Estado em mais de R$ 160 milhões - valor nominal relativo à época, sem a correção monetária. Atualizado, o montante chegaria à casa do bilhão (R$). Na decisão, a magistrada reconhece que a Ford foi responsável pelo rompimento do contrato e que o governo cumpriu todos os pontos previstos no contrato firmado ainda em março de 1998. Ela também decidiu julgar de forma separada a ação popular.
TJ discorda
Em 2010, a 22ª Câmara Cível anulou a sentença de primeiro grau que condenava a empresa a ressarcir o Estado, porque entendeu que havia uma conexão entre o processo e a ação popular, portanto, deveriam ser analisados de forma conjunta. Com isso, o caso voltou a ser analisado em primeiro grau.
Nova decisão de 1º grau
Em maio de 2013, a juíza Lílian Cristiane Siman, da 5ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Porto Alegre, condenou a Ford a ressarcir os cofres públicos em mais de R$ 160 milhões (referentes à primeira parcela do financiamento, crédito presumido de ICMS e estudos técnicos realizados), valor que deveria ser corrigido pela inflação e juros. Na mesma decisão, julgou extinta a ação promulgada por Vargas. Ela considerou ser "descabida a pretensão do autor de, por meio de ação popular, postular pela responsabilização dos réus por improbidade administrativa".
Revés no TJ
Em março de 2015, em segundo grau, a 21ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS decidiu, por unanimidade, reduzir a indenização a ser paga pela Ford, antes de R$ 160 milhões, para R$ 22,7 milhões – em valor a ser corrigido pela inflação e juros. O valor se referia à parte da primeira parcela do financiamento feito com o Banrisul que a Ford não comprovou ter utilizado.
No entanto, os magistrados entenderam que a rescisão contratual entre as partes se deu em razão do Estado manifestar oficialmente que não cumpriria o contrato, livrando a Ford de pagar rescisão. O TJ também manteve a extinção do processo relativo à ação popular.
Acordo homologado pelo STJ
O processo chegou ao STJ em outubro de 2015. No começo deste ano, na gestão de Sartori, a Ford e o Piratini passaram a negociar diretamente um valor de indenização. Depois de meses de tratativas, chegaram ao montante de R$ 216 milhões, que foi homologado pelo STJ, na terça-feira, 22 de novembro.
Contraponto
Em nota, a Ford diz que a "decisão reitera o compromisso da empresa" com o RS, onde, recentemente, instalou um centro de distribuição da marca. Leia a nota na íntegra:
A Ford celebrou um acordo com o governo do Estado do Rio Grande do Sul para pagamento de R$ 216 milhões, encerrando uma ação judical de mais de 16 anos sobre a instalação de uma unidade da Ford em Guaíba. Essa decisão reitera o compromisso da empresa com o Estado, onde foi instalado recentemente, em Gravataí, o Centro de Distribuição de Peças da Ford para atender a região Sul do país.