Em Canela, ele é apenas Miguel. Faz compras no supermercado, vai à fruteira, curte a vida no Interior como se nunca tivesse saído de lá, sem cerimônias. Miguel, na verdade, é Miguel Reale Júnior, um homem das leis, das letras e da urbe, nascido e criado em São Paulo. Um dos mais renomados juristas brasileiros.
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Desde 1995, quando se casou com a advogada gaúcha Judith Martins Costa, 61 anos, vive na ponte aérea. Divide-se entre o refúgio na Serra, rodeado de araucárias, e a agitação da capital paulista, onde mantém um escritório e dá aulas. Dos seus 69 anos, 44 são dedicados à Universidade de São Paulo (USP). É professor titular e chefe do Departamento de Direito Penal da instituição. Tem 18 livros publicados.
Nos anos 80, atuou na campanha pelas Diretas Já e foi assessor de Ulysses Guimarães na Assembleia Constituinte. Mais tarde, tornou-se ministro da Justiça no governo Fernando Henrique.
Hoje, acompanha a política de longe, com desânimo. Prefere ficar perto da família e trabalhar no silêncio de sua biblioteca particular, em Canela. Tem uma filha, duas enteadas, um neto de 18 anos e uma neta de cinco.
Durante duas tardes, nos dias 12 e 16 de setembro, Miguel recebeu a equipe de ZH para uma conversa. Falou da paixão pelo Rio Grande do Sul, do julgamento do mensalão, da malfadada reforma política e das redes sociais.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Zero Hora - Como começou a sua relação com o Rio Grande do Sul?
Miguel Reale Júnior - Começou quando passei a namorar a Judith Martins Costa, minha mulher, que é professora de Direito Civil. Eu tinha ligações anteriores com o Rio Grande do Sul, mas era um contato esporádico. Quando casei com a Judith, em 1995, acabamos nos estabelecendo em Canela, onde construímos nossa casa e nosso local de trabalho. A partir daí, passei a ter uma ligação maior, inclusive com a Ordem dos Advogados do Rio Grande do Sul e com a Faculdade de Direito da UFRGS. Temos também uma propriedade rural em Cambará do Sul, na beira do cânion. O Rio Grande me encanta pela sua firmeza de caráter, pela sua gente, sua natureza.
ZH - Como é a sua rotina?
Reale Júnior - Vivo na ponte aérea. Às vezes, fico quatro, cinco dias por semana aqui e vou para São Paulo, por conta do meu escritório e das aulas. Mas não gosto muito de São Paulo.
ZH - Por que não?
Reale Júnior - São Paulo é uma cidade em que há várias oportunidades, com possibilidades imensas de fruição cultural, mas é muito tensa, onde a incivilidade se sente mais presente. Essa tensão se verifica no elevador. As pessoas não se dizem bom dia. Entram no elevador de cara fechada. É como se o outro fosse um inimigo. É uma cidade que tem uma agressividade presente no ar.
ZH - E o senhor escolheu Canela para construir o seu refúgio.
Reale Júnior - Sim. Em toda pequena cidade, especialmente no mundo rural, há um olhar para o outro, uma preocupação com o outro, uma confiança, mesmo nas relações econômicas. Há um clima amistoso. Também escolhi Canela pela beleza, pela proximidade e por ter encontrado um recanto que tem rua de terra, araucárias. Tenho muito gosto pela vida rural.
ZH - O que o senhor costuma fazer quando está em Canela?
Reale Júnior - Trabalhar, estudar, elaborar pareceres, artigos. Consigo me dedicar muito mais ao trabalho aqui do que na turbulência da grande cidade. Levo uma vida comum. Não há nada melhor do que isso. Aqui, todo mundo me chama de Miguel. Gosto de ter contato com o comércio, de ir na ótica Canelense, na fruteira da Rejane. Hoje mesmo (segunda-feira), saí para fazer compras no supermercado.
ZH - E nas horas de folga? Sai churrasco?
Reale Júnior - Não, não sai churrasco. (risos) Tenho gosto por andar, caminhar e ir para Cambará, onde crio gado. É um divertimento. E gosto de acompanhar os jogos de futebol. Aqui, sou gremista. Em São Paulo, palmeirense. O bom é que fico informado sobre a série A e a série B (risos, referindo-se ao fato de o Palmeiras estar na segunda divisão).
ZH - O senhor construiu uma casa inteira para acomodar a sua biblioteca. Pode falar um pouco sobre ela?
Reale Júnior - É uma biblioteca particular, à qual apenas amigos e familiares têm acesso. O projeto foi feito por uma arquiteta de Gramado, e a construção foi concluída em 2009. Conta com livros que compunham o meu próprio acervo, principalmente na área de Direito Penal, e livros que herdei do meu pai (Miguel Reale, morto em 2006, que dá nome ao salão principal da biblioteca). Também há obras da família da Judith, que tem nove gerações de juristas, magistrados e grandes advogados. Muitas eram do pai dela, Antônio Martins Costa, e do avô, Zeca Martins Costa, que foi considerado o príncipe dos advogados rio-grandenses.
ZH - Qual é o tamanho do acervo?
Reale Júnior - Deve chegar a uns 15 mil livros. O ambiente é acolhedor, e há toda uma parte dedicada à história, que é um dos meus hobbies.
ZH - Além da produção acadêmica na área do Direito, o senhor escreve romances. De onde vem a inspiração?
Reale Júnior - Foi quase uma imposição da natureza. O Direito, especialmente o Direito Penal, vive o drama humano. Há um pouco de ficção em toda sentença judicial. E a literatura é a reprodução concentrada de um drama. Essa proximidade me levou ao estímulo da imaginação. Quanto ao Direito, aprendi almoçando e jantando em casa com o meu pai. Minha convivência com ele era muito grande. Conversávamos sobre Direito, política. Era natural.
ZH - Falando em política, como ela entrou na sua vida?
Reale Júnior - Sempre tive interesse, e ele se concretizou na atuação junto aos órgãos de classe dos advogados. Fui presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, em 1977, 1978, ainda moço. Foi uma época em que a associação assumiu uma luta importante pela redemocratização e passou a promover uma série de atos de contestação, de desobediência civil. Só depois, a convite do Montoro (André Franco Montoro, que seria governador de São Paulo), do Ulysses Guimarães e do Mario Covas, é que entrei no MDB.
ZH - Qual foi o papel do ex-deputado Ulysses Guimarães na sua trajetória?
Reale Júnior - Ele ensinava a importância de se combinar coragem com prudência, e não era algo é fácil. Ou você tende a ser prudente demais ou corajoso demais. Lembro de uma vez, logo no início da Assembleia Constituinte (em 1988), em que Ulysses promoveu um jantar para os relatores das subcomissões na casa dele. Esteve lá um senador do Rio Grande do Sul, o Bisol (José Paulo Bisol, secretário de Segurança do governo Olívio Dutra). Ulysses não o conhecia. Durante o jantar, Bisol provocou Ulysses de todas as formas, e Ulysses ficou quieto. Chegou uma hora que o Bisol não se aguentou e falou: "Dr. Ulysses, o senhor é um perdulário da prudência!" (risos) Quando o pessoal saiu, Ulysses perguntou quem era aquele senador. Ele era assim, de uma paciência enorme, mas também de muita sagacidade. Organizei com ele o primeiro ato a favor das Diretas. Eu era presidente da Fundação Pedro Osório, Fernando Henrique era o presidente do PMDB em São Paulo e Ulysses, presidente nacional. Fizemos uma convocação em outubro de 1983. Começou com um projeto para 2 mil pessoas e foi subindo até 10 mil. Depois, percebemos que não haveria tanta gente. Acabou acontecendo uma reunião com poucas pessoas na Assembleia Legislativa de São Paulo. Eu fiquei muito frustrado. Mas o dr. Ulysses estava vibrando e me disse: "Reale, nós encontramos um filão!" Pensei que ele estava fora da realidade. Meses depois, coube a mim, como secretário da Segurança, organizar o comício da Praça da Sé. E foi estrondoso. Ninguém esperava aquilo. O encontro reuniu quase 500 mil pessoas.
ZH - Foi um momento emblemático.
Reale Júnior - Sim. E o primeiro ato foi do Ulysses, que, em função disso, passou a ser chamado de Senhor Diretas. Ele simbolizou o movimento. É curioso que, nas reuniões, ele falava muito pouco. Na verdade, era alguém que sabia captar o pensamento das pessoas. Houve uma reunião muito importante na casa dele logo depois da derrota das Diretas, em abril de 1983, quando a emenda das Diretas foi rejeitada no Congresso. Nessa reunião, a discussão é se deveria haver ou não candidatura do PMDB à Presidência da República. Havia gente contrária, dizendo que não poderíamos legitimar o processo do Colégio Eleitoral. Eu defendia que devíamos tentar para não asfaltar a estrada do Paulo Maluf. Se não fôssemos, Maluf venceria. Ulysses não falou nada, só no final concordou e disse que tínhamos de encontrar um nome. Ele não era de falar muito. Era um observador. Mas, quando tomava uma decisão, era muito firme.
ZH - O senhor se sente frustrado por não ter conseguido se eleger para a Assembleia Constituinte?
Reale Júnior - Não. Eu sabia que seria muito difícil. Já era um processo eleitoral viciado, em que você precisava ter um curral eleitoral e muito dinheiro para manter cabos eleitorais. Percorri o Estado de São Paulo inteiro, mas chegava aos lugares, apresentava minhas propostas e ia embora. Não tinha cabo eleitoral para ficar ali, insistindo. E as pessoas acabam optando pelo nome que é sugerido no dia em que saem de casa para votar. Estive várias vezes fazendo palestras em uma cidade e depois fiquei sabendo que um candidato passou por lá de helicóptero e despejou dinheiro. Esse mal persiste, porque o nosso sistema eleitoral é o mesmo que prevalecia em 1946 e que se manteve, mesmo com a Constituinte.
ZH - É uma das falhas da Constituição de 1988?
Reale Júnior - Sim. A Constituição teve vários pontos positivos, principalmente no campo dos direitos individuais, mas não conseguiu superar isso. Na época, o Sarney cismou que queria ficar cinco anos no poder e saiu para o tudo ou nada. O problema é que a Constituinte já havia votado sobre o Poder Legislativo e optado pelo parlamentarismo. Aí, surgiu o Centrão, um grupo de resistência conservadora que apresentou a emenda presidencialista. Teve início uma cooptação ilegal da vontade dos constituintes, que considero o primeiro mensalão, com a distribuição de canais de rádio e de TV para quem votasse a favor do presidencialismo e dos cinco anos. Dito e feito. Vota-se o presidencialismo e tem de se fazer um trabalho de adaptação que resultou em um monstrengo.
ZH - Ficou uma espécie de presidencialismo às avessas?
Reale Júnior - Ficou um presidencialismo que não criou mecanismos de responsabilização dos partidos políticos, dos deputados. A Câmara faz o que bem entende. E qual é a consequência para ela? Nenhuma. Ela não responde pelos seus atos. Se ela quiser chantagear o presidente da República, ela chantageia. E aí surgem o mensalão, as emendas parlamentares, o orçamento impositivo. A única saída era a revisão constitucional, que não saiu em função de um acordo por omissão. Aí está a origem da crise política brasileira. É por isso que se fala tanto de reforma política. A origem está nos cinco anos do Sarney. Se há alguém responsável pela crise política brasileira, essa pessoa chama-se José Sarney.
ZH - Não há benefícios no presidencialismo de coalizão?
Reale Júnior - Esse é o presidencialismo em que se parte do princípio de que há 300 picaretas no Congresso e em que se tenta cooptar a vontade desse imenso plenário de anônimos que querem se reeleger, que querem vantagens para seus currais eleitorais, que viram office-boys de luxo. Ele é fruto dessa mixórdia que foi feita na Constituinte. Se você for olhar a Constituição de 1946, a estrutura política brasileira é a mesma, e sempre foi geradora de crises. Gerou a crise de Getúlio Vargas, em 1954, a crise do Jânio Quadros, em 1961, que era uma crise de falta de força no Congresso, a crise do Jango, cujo maior erro foi ter acabado com o parlamentarismo. A crise do Collor, o mensalão... O que é o mensalão, senão a tentativa de controle do Poder Legislativo por vias escusas? Por quê? Porque não se consegue montar uma maioria. O próprio Fernando Henrique teve de fazer uma divisão de poder que, de certa forma, desestruturou o governo, porque os ministérios eram entregues aos partidos.
ZH - O senhor participou desse processo. Qual é o seu sentimento hoje?
Reale Júnior - Vejo o cenário político com profundo desânimo. Foi se estabelecendo na sociedade brasileira o valor da esperteza. E a nossa classe política reflete a mentalidade da sociedade. Nós todos acreditávamos muito no processo democrático. Houve uma ilusão muito grande. Imaginávamos que, mudando do regime militar para o regime democrático, se operaria quase que milagrosamente um processo de dedetização da sociedade e da política. E o que acabou acontecendo foi o inverso.
ZH - Por quê?
Reale Júnior - Porque as estruturas não foram modificadas. Existem avanços, sem dúvida, nas formas de controle. Mas houve um crescimento vertiginoso da desonestidade como forma de ser, que não é algo exclusivo da classe política. Um dos grandes problemas, e não só no Brasil, é a corrupção privada. A corrupção que vai desde o presidente de uma empresa até o almoxarife que compra produtos em quantidade exagerada para receber um à parte do fornecedor. Não tirar vantagem é sinal de fraqueza. Tivemos o impeachment do Collor, cuja petição em grande parte foi elaborada por mim, e se imaginou que isso serviria de exemplo. Mas logo em seguida veio o escândalo dos anões do orçamento, comprometendo inclusive pessoas de relevo do PMDB. E aí é um não parar mais de escândalos. Agora, por exemplo, é a vez do Ministério do Trabalho. Tudo isso também vem muito da cultura brasileira. Raymundo Faoro e Gilberto Freyre examinam isso. É a mistura do público com o privado.
ZH - Qual é a sua opinião sobre o julgamento do mensalão?
Reale Júnior - Minha convicção é de que não deveria haver um novo julgamento, porque não se justifica uma revisão. Na verdade, é um pedido de reconsideração que não existe em nenhum tribunal. Contudo, está certo o ministro Celso de Mello ao afirmar que o fato de haver uma revisão não quer dizer que haverá absolvição de alguns crimes. José Dirceu foi condenado pelo crime de corrupção, que é o mais grave deles e não tem recurso cabível. O problema inafastável é que poderá restar à população a impressão de que o sistema jurídico existe para não funcionar. Isso vem a se somar à descrença na seriedade como um valor. Se o sistema foi feito para não punir, por que vou ser correto? Apesar disso, tem razão o ministro no sentido de que não cabe à Corte decidir pela pressão pública. Deve decidir sem se preocupar em atender às ruas, mas sabendo que existe uma voz das ruas, simplesmente porque ela existe. Se a Justiça não funciona para o leigo, sente-se também que o sistema penal está igualmente fracassado. E o que está se fazendo? Endurecendo as leis penais, como se isso resolvesse.
ZH - Como o senhor avalia a reforma do Código Penal?
Reale Júnior - Há um certo rigorismo e alguns erros graves. Mas o maior problema é a mania, no Brasil, de querer resolver a realidade pela lei. Se fosse assim, quando a lei dos crimes hediondos foi criada, em 1990, teríamos tido uma redução dos latrocínios, do tráfico de drogas. É uma visão quase ingênua ou comodista de imaginar que mudando a lei, muda-se a realidade.
ZH - E como se muda, se não é pela lei?
Reale Júnior - Pelo comportamento. Das elites políticas, da imprensa, das redes sociais. As redes sociais podem ter um papel educador, mas não têm. Elas podem derrubar o Mubarak (ditador egípcio deposto por uma rebelião popular em 2011), mas não constroem um novo governo. Quando se derrotou o Mubarak, o que sobrou? Sobrou o que já existia, o movimento fundamentalista islamita. Quer dizer, as redes sociais são capazes de destruir, mas não de construir. Elas se transformaram em um espaço de elogio mútuo e ninguém mais vive as próprias coisas se não mostrar que está vivendo. É um novo tipo de cartesianismo. Compartilho, logo existo. Tenho de dizer ao outro que estou no restaurante bebendo um vinho. Tenho de fotografar e passar para meio mundo. Quantos namorados vão ao restaurante para ficar ao telefone? Você sai com a namorada para ter companhia ao falar com um terceiro.
ZH - O senhor está em alguma rede social?
Reale Júnior - Não.
ZH - Não tem interesse?
Reale Júnior - Não. A ideia é preservar a privacidade, a intimidade.
ZH - As redes sociais podem ser úteis?
Reale Júnior - Sim. Elas podem divulgar ideias, movimentos, mas são fragmentárias e variáveis. A cada momento, há um interesse diferente. Os interesses são imediatos, urgentes, e não se consolidam. Infelizmente, acaba havendo um processo de conhecimento superficial. Há uma horizontalização, e não um aprofundamento das questões.
ZH - As redes sociais estiveram muito vinculadas às manifestações de junho. Que efeito tiveram?
Reale Júnior - Elas tiveram o efeito de mostrar que a sociedade existe, mas pouco foi construído em cima disso. E as manifestações tinham os mais variados motivos. Me recordo de uma placa que corria a Avenida Paulista inteira dizendo: "Vendo Escort 98, único dono." Quer dizer, tinha de tudo. O que se construiu? O Mais Médicos? Era um projeto do governo que existia havia meses e que estava sendo gestado como objeto de campanha do ministro da Saúde (Alexandre Padilha) a governador de São Paulo. Como se 4 mil médicos fossem resolver a questão. O problema não é falta de médicos, é a falta de estrutura. Além do Mais Médicos, o que mais? Uma proposta de Constituinte que ia colocar o Brasil em um processo de insegurança total? Depois, desistiu-se da Constituinte, inventou-se o plebiscito, que morreu na praia.
ZH - E a reforma política?
Reale Júnior - Também morreu, acabou. Ficou em uma proposta que está caminhando para alterar os mandatos para cinco anos e unificar as eleições. Mas parou nisso. Até hoje, o presidente Fernando Henrique lamenta não ter priorizado a reforma política, e creio que é de se lamentar mesmo, porque ele tinha condições de fazer, mas ficou mais preocupado com a reforma econômica. O problema todo, agora, é saber em que medida a sociedade civil organizada pode ter força de conduzir um processo de mudança.
ZH - O governo FH aprovou a emenda da reeleição, que até hoje causa controvérsia por suspeita de compra de votos. Foi um erro?
Reale Júnior - Creio que foi um erro não ter aprovado a emenda na revisão constitucional, como seria natural. Mas, em suma, há muitas dúvidas sobre esse fato, e havia muitos interesses que não eram apenas do presidente da República. O que consta é que havia governadores de Estados do Norte que tinham muito mais interesse em patrocinar essa compra, mas não foi isso que mobilizou a maioria a votar pela reeleição. Pode ter tido esse vício, mas não foi o fator determinante.
ZH - Como é a sua relação com Fernando Henrique Cardoso?
Reale Júnior - Tenho uma relação de amizade grande com ele, apesar de termos tido um problema sério quando fui ministro da Justiça. O presidente acabou sendo levado por informações errôneas, e esse foi um momento difícil para mim. Sempre tive vontade de ser ministro da Justiça para levar adiante um projeto. Na hora em que vi que o projeto estava comprometido, não tive saída a não ser me demitir. Fui desautorizado quando decidi intervir no Espírito Santo com o objetivo de fazer uma grande luta contra o crime organizado. Mas nós nos reconciliamos, temos uma relação de respeito mútuo.
ZH - Quais sãos os resultados destes 10 do PT na Presidência?
Reale Júnior - Houve um grande aparelhamento do Estado. Uma ocupação dos espaços estatais por pessoas ligadas ao PT. O partido tomou conta das estatais. Há também essa herança do mensalão, que é uma marca. Houve o avanço e a organização do Bolsa Família, que, aliás, não é uma criação do governo Lula, mas ainda falta organizar a saída do Bolsa Família. Nós não qualificamos as pessoas. Temos 80% de analfabetos funcionais na nossa população.
ZH - O PMDB está nesse governo desde o início. Qual é o papel do partido nisso?
Reale Júnior - O PMDB acabou se deturpando ao longo do tempo. Acabou se tornando um partido de grande coerência: ele é sempre governo. Tem um dado curioso da história que pouca gente sabe. O dr. Ulysses ia sair do PMDB no dia seguinte ao da sua morte (Ulysses morreu em outubro de 1992, em uma queda de helicóptero). Ele me ligou na quinta-feira anterior ao acidente e disse: "Reale, estou indo para Angra dos Reis. Na terça-feira, às 9h, tenho uma reunião com o presidente Itamar Franco. Depois da reunião, eu gostaria que você transmitisse ao Fernando Henrique e ao Covas que estou saindo do PMDB e que comigo sairão 60 deputados. Vamos formar, junto com o PSDB, um novo partido parlamentarista." O PMDB já estava tão desfigurado que o próprio Ulysses ia sair. E ele simbolizava o partido. Morreu sem ter o desgosto de ver o PMDB no núcleo do escândalo dos anões do orçamento.
ZH - O senhor mesmo saiu do PMDB antes disso, não?
Reale Júnior - Continuei com o Ulysses em sua saga presidencial e saí logo depois, quando tive uma reunião difícil com ele. Eu disse que não ficaria no partido do Orestes Quércia (ex-governador de São Paulo) e fui para o PSDB. Hoje, o PMDB é um saco de gatos, uma miscelânea.
ZH - O senhor ainda tem atuação partidária?
Reale Júnior - Continuo ligado ao PSDB, mas não tenho nenhuma atuação partidária.
ZH - Que análise o senhor faz do cenário eleitoral para 2014?
Reale Júnior - É difícil fazer uma projeção, porque temos uma crise econômica que se avizinha, temos a crise política, a força de um líder carismático como o Lula e uma ausência de candidatos carismáticos na oposição. Eduardo Campos (governador de Pernambuco, do PSB, aliado de Dilma) tem uma presença maior do que Aécio Neves (senador mineiro do PSDB), mas é muito cedo para dizer alguma coisa. O problema todo é o que interessa para a população que seja proposto e que ela acredite, que não seja mero teatro, mero faz-de-conta? O que uma eleição como essa pode trazer de efetivo benefício para a sociedade?
ZH - O senhor está desacreditado da política?
Reale Júnior - Muito. As crises que vivemos não foram suficientes para moralizar a política, pelo contrário. O processo do mensalão pode gerar um descontentamento com a Justiça. Não é que o Supremo deva decidir em função da opinião pública, mas ele tem de avaliar o impacto de sua decisão.
ZH - O senhor fala do mensalão, mas os petistas falam do mensalão mineiro, envolvendo o PSDB.
Reale Júnior - O mensalão mineiro não tem nada a ver com mensalão porque não teve compra de deputados. Pode ter havido o mesmo processo de operação financeira para obtenção de meios para a campanha. E foi altamente prejudicial na medida em que o PSDB se encolheu e não atacou, nas campanhas, o mensalão petista. O PSDB muitas vezes caminha de salto alto.
ZH - O senhor acompanha a política gaúcha?
Reale Júnior - Muito pouco.
ZH - Gostaria de fazer uma avaliação do governo Tarso Genro?
Reale Júnior - Não tenho condições.
ZH - Durante seis anos, o senhor presidiu a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. Como avalia o trabalho da Comissão da Verdade?
Reale Júnior - Ela enfrenta dificuldades naturais, mas já trouxe elementos interessantes de investigação, depoimentos importantes.
ZH - Qual é a diferença entre as duas comissões?
Reale Júnior - A Comissão da Verdade não tem um objeto específico, como tinha a nossa, de apurar a responsabilidade do regime militar com relação aos mortos e desaparecidos. E mais de 90% dos processos foram analisados de 1995 a 2001. Muita coisa foi feita. Foi triste, mas ao mesmo tempo satisfatório. Conseguimos elementos para estabelecer a responsabilidade do Estado em casos graves como o de Lamarca e Marighela.
ZH - Mas não houve punições.
Reale Júnior - As punições têm de vir pela história. O fato de ter passado o tempo não apaga os atos praticados. É por isso que a Comissão da Verdade é muito importante, para trazer à tona o que aconteceu.
ZH - Para finalizar, como é o Miguel Real Júnior sem filtro?
Reale Júnior - É um homem que gosta da vida rural, das amizades e da ironia. Tenho muito gosto pela conversação e pela falta de esprit sérieux, sabe? Não ser sério, ser um pouco irônico. Gosto de brincar, passar trotes nos amigos.
ZH - Sem redes sociais?
Reale Júnior - Sem redes sociais (risos).
Quem é Miguel Reale Júnior
Apaixonado pela vida no campo, ele mantém uma fazenda de 200 hectares em Cambará do Sul, recortada ao longo de dois quilômetros pela borda de um cânion. É no lombo da égua crioula Mineirinha que percorre a região e acompanha de perto o rebanho. Cria cerca de cem cabeças de gado, da raça inglesa Devon, acostumada a invernos frios e rigorosos.
É um apreciador fiel da bebida brasileira por excelência: a cachaça artesanal. De preferência, produzida em Minas Gerais, onde tem uma fazenda. Se for destilada em alambique de cobre e envelhecida em barril de carvalho, bálsamo ou umburana, tanto melhor. Quase todos os dias, no silêncio de sua sala de estar, em Canela, Reale Júnior se serve de uma dose para abrir o apetite.
Sempre que viaja a Paris, reserva algumas horas para visitar um de seus recantos preferidos na cidade-luz. Situada no número 16 da Rue des Écoles, no coração do charmoso Quartier Latin, está a fachada verde de L'Harmattan. Fundada em 1975, a livraria oferece mais de 170 mil referências em obras científicas e literárias. Reale Júnior não sai de lá sem um exemplar, em francês, de algum clássico da história ou dos romances de Georges Simenon. Muitas vezes, os livros lhe são enviados ao Brasil de navio.
Se pudesse, Reale Júnior passaria seus dias ouvindo música clássica. De sua coleção de CDs, fazem parte grandes obras do gênero, produzidas por virtuoses como Bach, Mozart e Beethoven. Mas as composições que mais ressoam nos corredores e salões da biblioteca do ex-ministro são do austríaco Franz Joseph Haydn, não por acaso conhecido como "pai da sinfonia". Sozinho, compôs mais de uma centena delas.