O Brasil conclui neste domingo (15) a primeira etapa de uma eleição marcada pela escassez do principal ingrediente da democracia: a participação popular. Assolada por uma pandemia que abreviou a vida de cerca de 165 mil pessoas, a população pouco se envolveu na disputa pelo voto. O medo de contaminação pela covid-19 inibiu comícios, esvaziou eventos e impediu até os mais prosaicos atos de um candidato em campanha, como abraços e apertos de mão. Agora, chegou o momento decisivo, a presença nas urnas.
O primeiro desafio já foi vencido. De 1,8 milhão de mesários, 780 mil são voluntários. Tamanha disposição surpreendeu a cúpula da Justiça Eleitoral, receosa de que a pandemia desencorajasse as pessoas que por tradição trabalham nas eleições. Até o final do primeiro semestre, havia dúvidas até sobre as datas de votação. Somente em 1º de julho a Câmara aprovou o adiamento do pleito, antes marcado para 4 e 25 de outubro.
No mesmo dia, o país alcançava 60 mil mortes causadas pelo coronavírus. Quatro meses e pouco mais de 100 mil óbitos depois, a dúvida agora é sobre o índice de comparecimento dos eleitores. Confinada desde março, a psicóloga Fernanda Canete, 28 anos, está disposta a furar a quarentena em nome do dever cívico.
Ao lado do marido, o bancário Rafael Vetelina, Fernanda evita a todo custo sair de casa. Não recebe visita, não frequenta lojas, bares ou restaurantes e só vê os pais no portão de casa, de máscara e a uma distância segura. Neste domingo, vai votar nos candidatos que escolheu a partir do comportamento e das posições tomadas durante a pandemia.
O voto é um direito, mas, quando temos a opção de escolher quem vai nos governar diante dessa situação, o voto é também obrigação
FERNANDA CANETE
Psicóloga
— Estamos vivendo um momento muito difícil e a gente precisa ser corresponsável. O voto é um direito, mas, quando temos a opção de escolher quem vai nos governar diante dessa situação, o voto é também obrigação. Tenho receio de ir até lá, mas vou — afirma a psicóloga.
Para o cientista político Leonardo Avritzer, o pensamento de Fernanda deve se repetir entre os 147 milhões de eleitores no país. Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e um dos coordenadores do Observatório das Eleições, Avritzer afirma que a polarização arraigada que marcou as disputas passadas, agora deve ceder lugar a avaliação mais criteriosa das aptidões de cada candidato:
— Vinha crescendo no Brasil a tendência do voto ideológico, as pessoas escolhendo os candidatos pelo que eles pensam e representam, com isso, a capacidade de governar acabou sendo secundarizada. Agora, estão olhando para os prefeitos que atuaram bem na pandemia ou ex-prefeitos que tiveram desempenho administrativo muito bom. É um voto mais pragmático.
Essa decisão, contudo, ficou cada vez mais tardia. Conforme demonstram as principais pesquisas de intenção de voto Brasil afora, a pandemia adiou o interesse pela eleição, sobrepujado por preocupações com a saúde e a manutenção do emprego. Essa apatia eleitoral foi reforçada pela ausência de grandes atos de campanha. Quando a propaganda no rádio e na TV começou, também não houve grande adesão.
Segundo pesquisa do Kantar Ibope Media aplicada nas 15 principais regiões metropolitanas do país, a audiência dos programas eleitorais caiu 16% em relação à eleição de 2016. A queda é mais brutal se levarmos em conta que agora há mais pessoas em frente à TV por medo de sair de casa.
— Numa eleição, é muito importante ocupar ruas. Claro que a pandemia criou formas de as pessoas se comunicarem. Gente que nunca tinha entrado numa teleconferência, entrou. Mas a política não pode abrir mão da rua — aponta Avritzer.
Desinformação
Sem as aglomerações, restou aos candidatos criarem novos meios de se aproximar dos eleitores. Segundo o coordenador do MBA de Marketing e Negócios Digitais da Fundação Getulio Vargas, André Miceli, a competição pela atenção alheia se acentuou, mas não gerou engajamento semelhante ao verificado nas eleições gerais de 2018, tampouco resultou em inovação na linguagem ou nas ferramentas de comunicação.
— A pandemia acelerou muita coisa, mas criou muito pouco. O formato de fazer campanha praticamente não mudou. Esse ano a gente teve muito meme, muita coisa engraçada, mas nenhuma novidade. As campanhas foram muito parecidas — avalia Miceli, também pesquisador da MIT Technology Review.
Com mais de meio milhão de candidatos, número jamais visto, outro fenômeno a se repetir foram as campanhas de desinformação. Diretor do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), o advogado Luciano Santos organizou seminários em parceria com quase todos os tribunais regionais eleitorais com objetivo de evitar a profusão de fake news. Um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, que só neste ano afastou mais 1 mil candidatos das urnas, Santos avalia que a Justiça Eleitoral está mais madura para enfrentar os movimentos organizados de disseminação de informações falsas:
— A eleição está bem mais tranquila do que em 2018. A Justiça está mais atuante, com grupos de combate a desinformação. Claro que continua havendo compra de votos, uso da máquina administrativa. Mas no fundo o trauma da pandemia é realmente o tema mais importante. Desperta nos eleitores a importância que tem a escolha do seu representante. A pandemia mostrou como é importante ter prefeito preparado para encarar adversidades e buscar soluções.
O pleito deste ano no país terá 147.918.483 eleitores e concorrerão 557.384 candidatos. Vão trabalhar 1.819.897 mesários em 5.568 municípios e serão utilizadas 473.503 urnas no Brasil.