Há pouco mais de 10 anos, em junho de 2013, milhares de pessoas ocupavam as ruas em todo o país, motivadas, inicialmente, contra o preço das passagens do transporte público. Essa pauta, muito defendida à época por movimentos estudantis e sindicais, incentivou as mobilizações ao redor do Brasil e deu início a uma década de grandes protestos e revoltas contra os poderes políticos. Em Caxias do Sul, as mobilizações não diferiram do restante do Brasil: na noite fria de 21 de junho, uma sexta-feira que registrou uma garoa chata, 25 mil pessoas, em um cálculo estimado, ocuparam as ruas do Centro em direção à praça Dante Alighieri.
Na sua maioria, os gritos de ordem e faixas dos caxienses eram contrários à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 37/2011 – a chamada “PEC da Impunidade”, que previa incluir a apuração de investigações criminais como atividade exclusiva da polícia judiciária, foi votada em 25 de junho de 2013 e rejeitada por 430 votos a nove – e aos investimentos para a Copa do Mundo de 2014, com reivindicações por “hospitais padrão FIFA”, em alusão aos estádios milionários que estavam sendo construídos para o evento. Os protestantes traziam ainda críticas à carga tributária e reivindicavam passagem a R$ 2,50 no transporte público, a pauta inicial. Havia também os que estavam “protestando por protestar”, com o objetivo de mudar o país, sem pauta específica.
Também houve a ação violenta e destrutiva dos chamados blackblocks, que quebraram vidraças de bancos, por exemplo, ou se envolviam em embates com a Brigada Militar. Em Caxias, chegaram a atacar o prédio da prefeitura também. Mas, entre os mais pacíficos, que só pediam melhores dias para o país e gritavam “sem violência” pelas ruas, não se observava bandeiras de partidos políticos, mesmo que seus integrantes estivessem participando.
De lá para cá, o país viu o que inicialmente seriam cerca de um milhão de pessoas protestando em 388 cidades, com pautas difusas e diversas, se desenvolver para protestos contra o governo da então presidente Dilma Rousseff (PT) em 2015 até evoluir para os atos de 13 de março de 2016, o maior da história do Brasil, mobilizando mais de três milhões de pessoas em todo o país, conforme polícias militares – o movimento Diretas Já reuniu 1,5 milhão de manifestantes em 16 de abril de 1984. Dilma, inclusive, deixaria a Presidência em 31 de agosto de 2016, após o Senado aprovar seu impeachment, motivado pelas denúncias de corrupção do governo federal, a crise econômica e a pressão popular.
A professora adjunta do Departamento de Ciência Política da UFRGS e doutora em Ciência Política, Cibele Cheron, explica que pessoas ligadas à direita ideológica, que engoliram o movimento que começou ligado a pautas da esquerda, usaram de uma “estratégia fascista”, o apartidarismo, para cooptação de insatisfações, a partir de pautas legítimas.
– Tanto essa estratégia quanto a cooptação por partidos de extrema direita coincide com uma maior adesão das classes sociais mais privilegiadas, insatisfeitas com a presença dos mais pobres nos seus espaços. (Insatisfeitas com) a PEC das Domésticas, com o reconhecimento dos direitos de qualquer trabalhador urbano para as que, até então, eram legalmente consideradas pouco mais do que escravizadas. Ou com a PEC do Trabalho Escravo, ameaçando setores do agro exportador de commodities e do vestuário.
Ascensão da direita e polarização
Após a derrubada de Dilma da Presidência, a direita viu espaço para crescer e se lançar ao poder, com o nome forte do então deputado federal Jair Bolsonaro (à época, filiado ao Partido Social Cristão, o PSC), que em 2018 foi eleito presidente da República pelo PSL (que se uniu ao DEM para formar o União Brasil). Nesse intervalo, houve a prisão por 580 dias do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Meses depois, o julgamento que o condenou foi anulado, pois o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou parcial a atuação do então juiz de 1ª instância Sérgio Moro (hoje senador pelo União Brasil).
Pensar dessa forma segmentada é um equívoco que contribui para a aversão à política institucional, à educação e à cultura
CIBELE CHERON
Professora adjunta do Departamento de Ciência Política da UFRGS e doutora em Ciência Política
Tudo isso gerou um cenário de polarização e radicalização da política no país, que se dividiu entre a esquerda e a direita, quase como inimigos em uma guerra: sem debate e sem diálogo, não somente entre os políticos dos espectros divergentes, mas entre a comunidade. As mesmas pessoas que há 10 anos se uniram nas ruas na luta por um país melhor tiveram acirramentos e separações entre amigos e até familiares pela escolha e defesa de um dos lados. Até em razão disso, algumas pessoas que participaram das manifestações em 2013, quando procuradas pela reportagem, optaram por não falar, com medo da exposição e de possíveis retaliações.
Sobre as mudanças nos últimos 10 anos, a cientista política Cibele Cheron avalia que não há como separar o cenário político do social, do econômico e do cultural.
– Pensar dessa forma segmentada é um equívoco que contribui para os mais disruptivos fenômenos, cujo agravamento se observa nos últimos 10 anos, como a aversão à política institucional, à educação e à cultura. O retrocesso nas políticas referentes a direitos sociais e ao reconhecimento dos direitos básicos dos grupos mais vulneráveis. A apropriação da esfera pública por grupos privados que se beneficiaram pelo desmonte do Estado e pela crise econômica.
Como avaliam o cenário político
Silvana Piroli
Em 2013: presidente do PT de Caxias do Sul
Em 2023: presidente do Sindicato dos Servidores Municipais (Sindiserv) de Caxias do Sul
"No início, as pessoas (da esquerda) até achavam que eram manifestações importantes para melhorar algumas coisas, mas logo se viu que não era bem isso que estava acontecendo. Depois vimos que o movimento tomou um rumo bastante complicado. As manifestações eram uma coisinha e deu suporte externo para outras armações que estavam sendo construídas no Parlamento, com a eleição (à presidência da Câmara dos Deputados) do (Eduardo) Cunha, com as pautas-bomba. É bom ter manifestações, mas as pessoas precisam ter claro quais são seus ideais, isso que fica de aprendizado. O movimento foi capturado por esse processo baseado em fake news, em mentiras e que gestou o golpe (impeachment da Dilma) e logo depois as políticas do Bolsonaro."
Maurício Marcon
Em 2013: representante comercial
Em 2023: deputado federal pelo Podemos
"O que podemos tirar disso é que o brasileiro tinha fama de não protestar e hoje não temos mais isso, aparentemente quando as pessoas estão descontentes já têm mais coragem de ir às ruas. Isso acabou, sim, ajudando na eleição do Bolsonaro, vínhamos de um período em que políticos tradicionais já não serviam e um outsider acabou chegando na Presidência. Acredito que do jeito que o país vem caminhando, com o Judiciário bastante aparelhado, e com declarações de Lula de que “a democracia é de cada um” e que “tem orgulho de ser comunista”, a corda está bem esticada e, se não for distensionada logo, vamos ter outros protestos grandes pelo país."
Cibele Cheron
Em 2013: professora dos cursos de Direito e Relações Internacionais na UniRitter
Em 2023: professora adjunta do Departamento de Ciência Política da UFRGS e Doutora em Ciência Política
"O que fica desse período de 10 anos é) a importância da participação política, a necessidade de reconstruir o Estado através de políticas públicas, a imprescindibilidade de reforçar os mecanismos de controle estatal, fortalecendo a sociedade, e a urgente reestruturação da educação, em todos os níveis, a fim de garantir a compreensão do que significam laicidade, trabalho justo, respeito às diferenças, equidade e cidadania. Institucionalmente, fica a necessidade de se compor um Legislativo comprometido com a representatividade, bem como a necessidade de olhar com critério a formação da coalizão sem a qual o Executivo se torna engessado e incapaz de governar."