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Moradia é um direito, mas ter uma casa é mais que simplesmente quatro paredes. Para a vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), Betânia de Moraes Alfonsin, moradia adequada envolve a oferta de serviços urbanos. Segundo ela, que é professora da Faculdade de Direito e do Mestrado em Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do RS e da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul, a política habitacional deve estar articulada com a política urbana.
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Especialistas apontam problemas e soluções para a habitação em Caxias do Sul
Nesta entrevista, concedida por telefone, Betânia, que é também coordenadora e professora de Educação à Distância no Curso Fundamentos Jurídicos das Políticas de Solo, vinculado ao Programa para America Latina y el Caribe do Lincoln Institute of Land Policy (EUA), fala sobre o problema do déficit habitacional brasileiro, faz críticas à política habitacional de privilegiar apenas a construção de novas unidades e defende um poder público com o papel de garantir a função social da propriedade. Confira os principais trechos:
Pioneiro: Quais os problemas e desafios da habitação no país?
Betânia de Moraes Alfonsin: A gente ainda tem um déficit habitacional muito grande no Brasil, gira em torno de 4,5 milhões de unidades habitacionais. A gente tem alguns programas importantes, como o Minha Casa Minha Vida, mas ele não foi capaz de diminuir significativamente esse déficit. Além disso, não é só a questão numérica, mas a qualidade do estoque habitacional existente, porque uma boa parte das cidades brasileiras foi produzida de forma irregular. São habitações precárias, assentamentos com carência de infraestrutura, com todo o sistema viário produzido de maneira irregular, e as pessoas vivem com muita insegurança jurídica, ou seja, com medo de serem despejadas. A gente tem graves problemas também na área da regularização fundiária, de qualificação desses assentamentos, urbanização.
Pioneiro: E como se resolvem esses problemas?
Betânia: Acho que o Brasil erra ao apostar somente na construção de novas unidades habitacionais, em programas como o Minha Casa Minha Vida, porque a gente tem uma legislação de regularização fundiária e esses programas foram muito abandonados no último período. Isso tem que ser recuperado, e todos esses assentamentos que fazem parte do processo de urbanização brasileira – que, na verdade, são as nossas favelas, os loteamentos clandestinos e irregulares – têm que ser olhados com uma atenção especial. A cidade é plural, mas precisa ser qualificada e acho que os governos, em todos os níveis, deveriam retomar esses programas de regularização fundiária, transformando as favelas em bairros, integrando essa população à cidade, garantindo segurança da posse e também urbanizando.
Pioneiro: O que é uma moradia adequada? Os brasileiros, de forma geral, vivem de maneira adequada?
Betânia: Os brasileiros não vivem de maneira adequada. De forma geral, as cidades brasileiras têm, no mínimo, 30% do estoque habitacional produzido de forma irregular e os padrões que a gente pode utilizar para falar de uma moradia adequada são os padrões que as Nações Unidas usam. Há um comentário feito pela comissão dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais que é o comentário geral número 4, que diz que uma moradia adequada tem, em primeiro lugar, segurança da posse, que significa proteção contra despejo forçado; tem habitalidade, ou seja, foi construída em uma área que não é de risco; tem um custo acessível; tem acessibilidade, no sentido de que os programas são acessíveis para todos de forma geral sem discriminação de sexo, orientação sexual, idade, religião; essa moradia tem que ter uma localização adequada, no sentido de que moradia é mais do que quatro paredes, tem que ter acesso à cidade; e, finalmente, ela tem infraestrutura de serviços, acesso a todos os equipamentos urbanos, saúde, escola, luz, água potável, esgotamento sanitário. Isso é uma moradia adequada.
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Pioneiro: Nessa questão da habitação, o RS está numa situação melhor, pior ou parecida com outros Estados brasileiros?
Betânia: De maneira geral, o RS tem índices um pouco menores de irregularidades. A gente chega a ter alguns lugares no Brasil com 60% da cidade produzida de maneira irregular. É o caso de Recife. No caso do RS, a gente deve estar girando entre 25% e 30% do estoque habitacional produzido de maneira irregular. Então, a nossa situação não é a pior de todas, mas é muito falso dizer que o Brasil tem na Região Sul uma Europa, nenhum tipo de problema. A gente tem muito problema, e as nossas políticas habitacionais têm falhado muito em atender adequadamente às necessidades habitacionais da população de baixa renda. Acho que, sobretudo, isso tem a ver com uma questão mais ampla, que é também uma falha na política urbana. A política habitacional tem que ser entendida de forma articulada com a política urbana. O Brasil não tem uma política adequada em relação aos vazios urbanos, os proprietários continuam exercendo seu direito de propriedade como se estivessem no Século 19, como se pudessem fazer o que entendessem. O poder público tem um papel no sentido de garantir a função social da propriedade, não no sentido filosófico, mas no sentido de que a população de baixa renda tem direito a ter moradia. Então, exercer o direito de propriedade, retendo especulativamente um vazio urbano numa área bem servida de infraestrutura é exercer esse poder de maneira abusiva. O poder público deveria ter uma aplicação daqueles instrumentos que a Constituição Federal previu, notificar esses proprietários para parcelar ou edificar de forma compulsória, aplicar o IPTU de forma progressiva no tempo se o proprietário não der um adequado aproveitamento à terra e, finalmente, desapropriar com pagamento e títulos da dívida pública.
Pioneiro: Sobre moradores de rua, como o poder público pode lidar com essa questão?
Betânia: A situação do morador de rua envolve duas questões: uma parte dessa população realmente é vítima de uma falta de política habitacional. Mas a população de rua envolve também o problema de saúde e assistência social. Uma boa parte está em situação de exclusão social mesmo, se degradou, se envolveu com drogas e acabou não sendo mais aceita no núcleo familiar, então, também envolve a assistência social. Não é minha área, mas nesses estudos se vê que boa parte dessa população sequer deseja sair da rua. É um problema supercomplexo, mas, efetivamente, uma parte dessa população poderia ser atendida por programas habitacionais que tivessem um olhar para essa situação de vulnerabilidade, mas a gente não consegue nem ter programas para a população de baixa renda e que até tem uma certa capacidade de pagamento. O Brasil está bem atrasado em relação a isso.