Em três meses, de janeiro a março de 2024, oito homens foram presos por estupro de vulnerável em Caxias do Sul. Eles são acusados de abusar sexualmente de nove crianças ou adolescentes, uma vez que um deles cometeu o mesmo crime contra duas vítimas. No mesmo período de 2023 foram registradas três prisões na cidade. Como na maioria das vezes, o abusador está dentro de casa, no mesmo núcleo familiar, tem vínculo com a vítima, ou ainda é conhecido da família ou há subnotificação dos casos, o que significa que muitos crimes sequer chegam a ser denunciados à polícia.
Nos casos de estupro de vulnerável, a investigação fica sob responsabilidade da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). A delegada Aline Martinelli afirma que o número de prisões em tão pouco tempo é expressivo:
— Esse número é fruto do trabalho de investigação da DPCA em cima desses crimes. O estupro de vulnerável é priorizado pela delegacia em razão da gravidade e da monstruosidade do fato, uma vez que envolve crianças e adolescentes, que não têm condições de se defender e de tomar uma iniciativa sozinhos — ressalta a delegada.
Ela explica que cerca de 90% dos crimes são praticados por pessoas do convívio da criança ou adolescente, o que compromete o número de denúncias feitas pela família:
— Essa proximidade do estuprador com a vítima e com os familiares, muitas vezes, faz com que o estupro não seja denunciado. Como gera problemas no núcleo familiar, há certa resistência da própria família em acionar a polícia. Também há a questão da vergonha e transtornos psicológicos para todas as vítimas. Infelizmente, nós temos casos em que a própria família não acredita na palavra da criança ou do adolescente — aponta a delegada.
Ela frisa que as crianças e adolescentes precisam do auxílio da família, do Conselho Tutelar, dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e também dos profissionais da saúde e professores. Isso porque, ao perceber que está acontecendo algo, esses órgãos procuram a polícia e encaminham as vítimas para atendimento. Os casos também podem ser denunciados de maneira anônima aos canais especializados:
— Quando o estupro não é percebido ou não é denunciado pela família, geralmente, as crianças conseguem ajuda na escola, quando os professores começam a perceber mudanças no comportamento ou quando elas apresentam problemas de saúde. Nesse momento, as instituições denunciam o crime e buscam acolhimento para as vítimas —afirma Aline.
Crianças não são ouvidas pela polícia
O estatuto da criança e do adolescente proíbe que os policiais civis ouçam às crianças e adolescentes vítimas de abuso ou violência sexual. Essa medida foi tomada para evitar a revitimização, que ocorria por meio da insistência de repetições dos relatos sobre a violência sofrida. A atual legislação estabelece que a vítima relate o estupro apenas para um profissional especializado.
— Hoje, não podemos mais tomar o depoimento dessas crianças e adolescentes na delegacia para evitar ao máximo a revitimização. Antes da nova lei, a vítima contava sobre o estupro ao médico, ao policial na delegacia, depois contava para o delegado, para o promotor e para o juiz. Isso não ocorre mais — esclarece a delegada.
Depois que é feito o registro de ocorrência, os policiais da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente solicitam que a vítima seja ouvida por um especialista. Enquanto isso, a equipe da delegacia procura os familiares e demais testemunhas para colher depoimentos e provas referentes ao crime. A delegada Aline ressalta que o relato da vítima ao profissional é essencial para a investigação.
— O relato da vítima é feito para um único profissional, que normalmente é um psicólogo. Também pode ser um depoimento especial no judiciário, que ocorre quando o Poder Judiciário encaminha a vítima para uma psicóloga nomeada pelo juiz . É importante ressaltar que nos crimes sexuais as vítimas falam com clareza de detalhes, que geram emoção nas crianças e adolescentes no momento em que elas contam o que aconteceu. Isso é essencial para seguir com o processo criminal e encaminhar as vítimas para o atendimento necessário.
A delegada esclarece ainda que se a família tem conhecimento do estupro e não toma nenhuma providência, ela tem responsabilidade em razão da omissão:
— É um crime que também pode ser cometido de forma omissiva porque no momento que a família não denuncia, e às vezes acontece, também existe uma responsabilização legal.
Para o estupro de vulnerável, a pena é de oito a 15 anos, sendo aumentada no caso de lesão corporal grave para 10 a 20 anos e, no caso de morte, de 12 a 30 anos. Também há qualificadoras que aumentam a pena conforme o grau de parentesco do autor do crime com a vítima.
Fluxo de atendimento
Por meio de nota, os Conselhos Tutelares Sul e Norte de Caxias do Sul se manifestaram sobre o assunto:
"Os Conselhos Tutelares Sul e Norte de Caxias do Sul esclarecem que abuso sexual é crime e independente se praticado contra criança/adolescente é necessário intervenção dos órgãos de segurança pública que poderão dar flagrante do crime ou por meio do boletim de ocorrência policial para que ocorra investigação dos fatos e a responsabilização criminal dos envolvidos. Nos casos em que a situação de violência for constatada pelos responsáveis o primeiro passo é buscar a Delegacia para registro de ocorrência, momento em que será avaliado a necessidade de afastamento imediato do violador e a vítima será encaminhada para atendimento pericial junto ao Centro de Referência em Atendimento Infanto-juvenil – CRAI, onde receberá o atendimento clínico, inclusive com profilaxia conforme a necessidade e passará pela avaliação psíquica, nos casos em que o crime tenha ocorrido até 72 horas, a vítima será prontamente atendida, conforme fluxo já estabelecido.
Nos casos em que a situação de violência for constatada por agente público, que são os casos em que a criança/adolescente revela a situação de forma espontânea na escola, no SCFV ou no atendimento de saúde por exemplo, o profissional fará a escuta protegida da vítima e imediatamente fará a busca ativa de um familiar protetivo que realizará o tramite anteriormente citado. O referido profissional remeterá as informações concernentes a revelação espontânea da vítima a autoridade competente com o objetivo de evitar a revitimização. Quando constatado que não há um familiar protetivo o Conselho Tutelar será imediatamente comunicado que aplicará as medidas urgentes. Nos casos em que a situação de violência for constatada por qualquer pessoa da sociedade civil a intervenção deve ser feita por meio de denúncia. O contato pode ser feito diretamente com o Conselho Tutelar e Disque 100, após registro da denúncia a situação será averiguada e as medidas protetivas aplicadas.
Os profissionais que trabalham com atendimento a crianças e adolscentes devem estar atentos aos sinais/comportamento que possam indicar que estejam sofrendo violência sexual. Também devemos estar atentos ao fato de que relação sexual envolvendo adolescentes com idade inferior a 14 anos é crime, previsto em lei e independente do consentimento se caracteriza crime. Importante mencionar que as denúncias devem ser feitas também quando houver suspeita de abuso e não somente diante de uma possível confirmação. Garantir que nenhuma criança ou adolescente sofra negligência ou violência é dever de todos."
Fique alerta aos sinais
Sinais que podem indicar que uma criança está sendo vítima de violência sexual:
- De alegre e afetuosa, a criança ou adolescente se torna retraída, triste, irritada ou agressiva e se isola.
- Passa a mostrar apatia, medo, queda no desempenho escolar e mudanças na aparência.
- Tem pesadelos ou sono agitado.
- Volta a urinar na cama.
- Demonstra aversão ou medo inexplicáveis em relação a determinadas pessoas, ou gênero (homens, geralmente).
- A criança não quer ir a lugares aos quais gostava ou deveria gostar de ir.
Sinais físicos:
- Coceira, vermelhidão ou machucados nos órgãos genitais.
- Sujeira incomum nas roupas íntimas da criança.
- Comportamento de risco.
- Automutilação, ideação suicida, tentativa de suicídio, uso de bebida alcoólica ou de substâncias psicoativas, exposição sexual, comportamento hipersexualizado e fugas de casa.
Denuncie:
As informações sobre crimes sexuais contra crianças e adolescentes podem ser encaminhadas pessoalmente ou por telefone nos seguintes serviços:
- Polícia Civil: 197
- Disque-Denúncia: 181
- Disque 100: atende 24 horas e não é necessário se identificar
- DPCA de Caxias do Sul: Rua Marquês do Herval, 1.178, Centro (perto da sede social do Recreio da Juventude). Telefone: (54) 3214-2014
- Conselho Tutelar Norte: Rua Dr. Augusto Pestana, 26, no bairro São Pelegrino, quase esquina com a Rua Marechal Floriano. Telefone: (54) 3218.6070
- Conselho Tutelar Sul: Rua Dr. Augusto Pestana, 26, no bairro São Pelegrino, quase esquina com a Rua Marechal Floriano. Telefone: (54) 3218.6080. O horário de funcionamento é de segundas a sextas-feiras, das 8h às 12h e das 13h30min às 17h30min. Após esse horário e nos finais de semana, o atendimento de denúncias é feito pelo telefone de plantão (54) 99620-7633.
Apoiar
O acesso ao Ambulatório de Atendimento Integral a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (Apoiar) ocorre via encaminhamento por meio de medidas protetivas do Conselho Tutelar e do Ministério Público. O espaço presta assistência especializada a crianças e adolescentes e às famílias, por estarem envolvidas em situações de maus-tratos como abuso sexual, físico, psicológico e negligência. O Apoiar desenvolve atividades preventivas e educativas junto à rede de saúde, educação, assistência social, instituições afins e comunidade em geral.