Em menos de uma semana, três casos de violência contra a vida tiveram o envolvimento de crianças em Caxias do Sul. A maior cidade da Serra registrou a morte de um bebê de seis meses, um garoto de nove anos baleado na cabeça e o assassinato de um homem na frente de duas meninas que estavam indo até a van escolar em um intervalo de cinco dias. Um comportamento poucas vezes visto nos últimos anos, que é analisado pelas autoridades e demonstra que não há mais limites para a criminalidade. Das 74 mortes violentas desde janeiro em Caxias, seis envolveram crianças e adolescentes de seis meses, 15, 16, 17 e 18 anos.
À frente da investigação dos três crimes que chamaram a atenção nesta última semana, o delegado Caio Márcio Fernandes, titular da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de Caxias do Sul, entende que os criminosos optam por não perder a oportunidade de executar o alvo mesmo quando há a presença de grupos vulneráveis, como as crianças, que não têm envolvimento com a criminalidade.
— Com relação aos três casos (da última semana), identificamos que nenhum deles guarda relação entre si. O que identificamos, entretanto, e já não é de agora, é que há um total desprezo por parte dos executores em relação à presença de crianças, idosos, deficientes. Acabam sendo um efeito colateral de disputas entre o alvo e o executor. Identificamos uma completa falta de respeito, onde executores acabam preferindo consumar o intento criminoso e assumir o risco de atingir terceiros — avalia.
O delegado vê também uma mudança de perfil entre os executores e nas regras que o próprio crime organizado adotou nos últimos anos. Segundo Fernandes, a agressividade é a mesma de anos anteriores, mas que agora não poupa ninguém.
— Sabemos que criminosos antigos, experientes e com vasta folha com antecedentes policiais possuem um respeito maior em relação aos criminosos mais novos, que, com o objetivo de cumprir com a sua missão criminosa, acabam não se importando para valores que, no meio criminoso, eram respeitados, como preservar crianças, mulheres e idosos. Antigamente, pouco se aceitava alguém que praticava um crime, mesmo que de forma indireta, contra uma criança. Hoje, infelizmente, em razão do número de delitos dessa natureza ter aumentado, tem se tolerado esse tipo de comportamento — afirma Fernandes.
Em relação aos 74 homicídios registrados neste ano, o delegado afirma que o tráfico de drogas não é mais o principal fator por trás dos crimes.
— A maioria dos homicídios dos últimos dois meses são fatos pontuais, relacionados a questões interpessoais, e não com disputa do tráfico de drogas. No passado, a maioria dos crimes violentos envolvia facções e organizações criminosas. Esse pano de fundo ainda existe, mas numa proporção menor. Temos diversas brigas de bar, disputa entre vizinhos, problemas familiares, diversos outros contextos mais presentes do que aquilo que nos preocupa, que é a disputa entre facções — avalia.
Brigada Militar vê violação dos direitos humanos
O comandante do 12º Batalhão de Polícia Militar, tenente-coronel Ricardo Vargas, entende que é importante discutir as leis penais, que fazem com que os criminosos não cumpram com as penas previstas na totalidade e logo retornem às ruas.
— O nosso entendimento é que quando esse tipo de crime afeta um grupo vulnerável, como as crianças, é porque a sociedade violou todas as regras básicas de direitos humanos. Isso acontece porque o criminoso tem a certeza da impunidade. Ele tem a certeza que não vai cumprir por completo a sua pena, e isso atrapalha muito o trabalho da polícia — ressalta.
Segundo ele, a BM atua com três grupos de inteligência e reforçou o policiamento nas ruas. Vargas ressalta ainda que, desde o início do ano, a polícia realizou 2,1 mil prisões, 237 recaptura de foragidos e apreendeu 127 armas de fogo.
— O crime não está mais respeitando as suas próprias regras, e quem está na cadeia sabe do que estou falando. É importante que a gente tenha a criança como o limite daquilo possível que possa acontecer pelo grupo vulnerável que ela representa. Nos choca, nos causa sensibilidade e faz com que tenhamos que atuar ainda mais forte no combate ao crime — destaca.
Psicóloga alerta para os cuidados com as crianças
O que pode ser feito para auxiliar crianças vítimas de violência ou que presenciaram cenas brutais? De acordo com a psicóloga, mestre e doutoranda em psicologia Marina Heinen, é importante procurar ajuda para conversar com os pequenos e com os responsáveis por eles, a fim de todos estarem atentos ao comportamento das crianças expostas a situações de risco e de vulnerabilidade.
— Uma criança que presenciou a morte de um familiar, de um amigo, ou alguma lesão grave de alguém, ela pode desenvolver um trauma e até um transtorno mental. Precisa ser tratado, o que envolve contato com a criança e orientações aos pais e familiares para melhor condução, e acolher essa criança que vivenciou isso. As crianças que sofrem diferentes tipos de violência acabam tendo como consequência, a curto, médio e a longo prazo, sintomas como insegurança, ansiedade, isolamento, sintomas relacionados à depressão, inquietação e agressividade — explica ela, formada pela PUCRS.
Ainda de acordo com a profissional, esses comportamentos vão refletir em diferentes ambientes, como o escolar, podendo ocasionar impacto na aprendizagem das crianças. No caso das crianças acompanhadas do padrasto morto a tiros no Monte Carmelo, Marina entende que elas foram violentadas ao serem expostas a esse tipo de situação.
— Quanto mais vínculo temos com a pessoa que a gente perde, isso vai influenciar no processo do luto dessa criança. Vivenciar essa perda mexe com os laços e pode se configurar um trauma. Acredito que o primeiro passo para ajudar é não expor uma criança a esse tipo de violência. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) coloca, de maneira bem compreensível, que é dever de todos proteger as crianças e adolescentes. A gente nem deveria falar sobre isso porque isso não deveria acontecer. Elas estão em fase de desenvolvimento e estão vulneráveis — afirma.
O que se sabe sobre os casos
Pioneiro conversou com o delegado Caio Márcio Fernandes sobre a investigação dos casos de violência que envolveram crianças nesta semana em Caxias do Sul.
Menino encontrado gravemente ferido
O menino de nove anos encontrado gravemente ferido após ter sido baleado na cabeça em Caxias do Sul segue internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital. A criança passou por procedimento cirúrgico na manhã de quinta-feira (6) e está respirando com auxílio de ventilação mecânica. Além do ferimento por arma de fogo, o menino apresentava trauma pneumotórax e fratura de bacia.
O menino foi encontrado durante a madrugada próximo ao corpo do pai, que estava caído em frente a um carro na Estrada Attílio Citton, em um trecho sem calçamento, em meio ao matagal no bairro Jardim Eldorado. Segundo o delegado, não é possível apontar uma linha de investigação e nenhuma hipótese é descartada.
— Estamos ouvindo diversas testemunhas, realizando diligências e também aguardamos a plena recuperação da vítima para, quem sabe, conversando com ela, consigamos esclarecer o contexto. Todo o quadro de elementos objetivos que apuramos se mostra bastante confuso e complexo para a compreensão tendo em vista a gravidade e a falta de nexo entre algumas situações — explica.
Jovem morto próximo de crianças no Monte Carmelo
Um jovem de 19 anos identificado como Gabriel Andrade Ramos foi morto a tiros na quarta-feira (4), em Caxias do Sul. O crime foi registrado na Rua Tupi, no bairro Monte Carmelo. Ramos estava com duas crianças, que são enteadas dele.
Ramos aguardava por uma van que levaria as meninas, de três e oito anos, para a escola quando foi baleado. Elas não se feriram, mas presenciaram a cena. Conforme a polícia, um homem armado surpreendeu a vítima e disparou. Ele morreu no local.
— A principal linha de investigação é uma retaliação ao padrasto das crianças, que estava levando-as até o ponto, parada de ônibus, para que fossem conduzidas até a escola. Esse indivíduo apresentava diversos antecedentes policiais, ainda como adolescente infrator, com histórico de roubo, receptação, tráfico de drogas, porte ilegal de arma restrita. Acreditamos que, por esse recente histórico policial dele, ele tenha um profundo envolvimento com organizações criminosas, com alguma disputa pessoal, com indivíduos da mesma facção ou facção diferente — explica o delegado.
Bebê morto no colo do pai no Cidade Industrial
Benício Paim Costa, seis meses, foi alvejado enquanto estava no colo do pai, em frente a uma casa na Rua Nonoai, no bairro Cidade Industrial, em Caxias, na tarde de domingo (1º). A Polícia Civil investiga se o homem alvejado era realmente o alvo dos criminosos. Um homem de 42 anos, suspeito de ser um dos envolvidos, foi preso temporariamente na madrugada desta segunda-feira (2).
— O que temos certeza é que, do lado do local onde ocorreu o crime, funcionava um ponto de tráfico que nós já tínhamos uma operação planejada para incursão no início da semana. Ocorre que, com esse fato do homicídio do bebê e da tentativa de homicídio do pai, tivemos que antecipar essa ação para o próprio domingo e colocamos em prática uma prisão que tínhamos decretado em relação a um dos suspeitos em poder do veículo branco usado para a fuga dos executores — afirma.