Um episódio vergonhoso, mas de grande aprendizado. Foi assim que o comando do 12º Batalhão de Polícia Militar (12º BPM) avaliou a perseguição policial que resultou na morte de Lucas Raffainer Cousandier, 19 anos à época. O caso aconteceu na madrugada de 4 de fevereiro de 2016 e levou três brigadianos ao Tribunal do Júri na segunda e terça-feira.
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Autor do disparo fatal, o soldado Emerson Luciano Tomazoni foi condenado a 11 anos e seis meses de reclusão por homicídio por dolo eventual e os crimes conexos, como fraude processual e porte ilegal de arma de fogo. Os outros dois réus, Gabriel Modesto Ceconi e Devilson Enedir Soares, foram absolvidos do homicídio e tiveram penas menores. As defesas já manifestaram que irão recorrer da decisão.
Confira as opiniões do tenente-coronel Jorge Emerson Ribas, comandante do 12º BPM:
Pioneiro: O comandante acompanhou a maior parte do júri?
Tenente-coronel Jorge Emerson Ribas: Estava arrolado com testemunha de defesa de um dos três réus, do Devilson Soares. Eu não conhecia os fatos, pois não estava no Batalhão (naquela época) e não acompanhei o inquérito, a investigação ou o conselho (de disciplina). Este (júri) foi um fato extremamente lamentável, triste e vergonhoso para a instituição. Por essa relevância, fiz questão de acompanhá-lo todo. Tem o lado da representação da instituição. Todos os PMs que estavam lá, seja a paisana ou fardados, estavam de folga, de forma voluntária e por interesse pessoal. Foi um júri diferenciado, não recordo de outro recente em Caxias do Sul.
A corporação, em algum momento, se sentiu atingida?
Falo mais pela minha percepção do que pela instituição em si: recebi com naturalidade tanto as críticas que chegaram por parte do promotor quanto os elogios por parte da defesa. Um júri, como sabemos, há muito extremo dos dois lados. Existem críticas demasiadas e elogios também demasiados. Nos colocamos sempre nos mesmos termos. Não me senti, em nome da instituição, ofendido pelo que o promotor (Eugênio Paes Amorim) falou. Na verdade, concordo com a maioria das colocações que fez. Como, também, concordo com a maioria que a defesa fez. Já vamos (a um júri destes) esperando ouvir posições extremadas.
A tese de defesa foi que o tiro que matou Cousandier foi uma imperícia em razão do pouco treinamento de PMs. Qual a sua avaliação?
Repito o que falei como testemunha sob juramento. O nosso treinamento teve um salto de qualidade muito grande nos últimos 10 anos. Houve uma qualificação, com uma preocupação muito maior e a repetição de tiro melhorou muito. O armamento também está bastante qualificado, com a padronização da pistola calibre .40. Os fatos mostram isso. Nos últimos três anos, com exceção desta caso que foi a júri, são confrontos plenamente justificados e com a superioridade de força pelos PMs. Esta semana foram dois casos (de criminosos que morreram em confronto com a BM) que, até que se prove o contrário, o que seria uma grande surpresa, trataram uma lisura do ponto de vista da legalidade. Não vejo a hipótese de alegar imperícia naquele caso. Se o tiro houve, foi intencional. O que não foi intencional, foi o resultado (a morte de Cousandier).
Defesa também alegou que não havia efetivo para um cerco ao carro perseguido. Há PMs suficientes para este tipo de abordagem?
A situação varia muito em relação ao dia e, principalmente, horário. Aquela perseguição foi próxima das 4h, que é o horário que temos o menor número de viaturas circulando. A realidade é a mesma daquela época. Muito provavelmente, um cerco neste horário dificilmente tem condições de ser realizado. Se tivermos cinco viaturas nas ruas, muito provavelmente as demais viaturas estarão atendendo ocorrências e em regiões distantes da cidade. Sobre cerco, a probabilidade dele acontecer de fato é no horário de comércio e no turno da noite. Na madrugada, um cerco é muito mais uma teoria. Sobre este caso concreto, a falta de viaturas de apoio não justifica o disparo. O disparo é anti-técnico, está normatizado e todos os policiais têm ciência e sabem que o tiro não é justificado em uma perseguição para fazer parar o veículo.
Como deve ser a atuação de PMs em uma perseguição?
Lembro que foi respondido por uma das testemunhas (do júri), o sargento Lourenço (Jucelino de Siqueira), que foi muito claro em sua resposta. Quem está colocando em risco outras pessoas e outros veículos é a pessoa que está fugindo. Não podemos causar um mal maior do que aquele que está fugindo com um disparo. A norma impõe: não se atira em carro movimento. Sabemos por inúmeras experiências que este carro (perseguido) ou irá parar ou irá bater. Esperamos que não aconteça um acidente, mas o disparo não tem capacidade técnica e não foi feito para parar um veículo. Uma perseguição é uma situação de risco, mas não justifica o disparo, justamente por não sabermos quem está dentro (do automóvel). O disparo é uma decisão pessoal e só se justifica como legítima defesa própria ou de terceiros. Aquele que foge não está colocando em perigo aquele que está no seu encalço.
O soldado Tomazoni, ao falar sobre as armas enxertadas, disse que as tinha para um flagrante planejado ou retardado do "verdadeiro criminoso". Como o senhor recebeu este depoimento?
Este fato, e eu estava presente quando foi declarado, torna o policial mais criminoso do que aquele que estava com as armas. O PM, pela função pública que tem, se torna mais criminoso. Esta alegação foi uma tentativa absurda de defesa, que não tem conexão nenhuma. Não existe justificativa por nenhum ponto de vista, nem legal, nem técnico, nem jurídico e nem pela corporação. Vejo como uma tentativa desesperada de tentar justificar o injustificável. O que ele deveria ter feito, mesmo se a mulher tivesse feito a entrega de vontade própria das duas armas, esta mulher deveria ter sido conduzida para a delegacia para se fazer o registro e a entrega de maneira imediata das armas. Depois, cabia a delegacia a investigação dos fatos. Um flagrante preparado é ilegal. Na fala do advogado, ele (Tomazoni) se corrigiu e citou um flagrante retardado, que não se aplica e não tem semelhança qualquer com este fato. Uma ação retardada precisa de uma investigação e, na maioria, de conhecimento e autorização judicial. Foi um absurdo jurídico e uma grande inverdade, nossa orientação é justamente pelo caminho contrário. Foi algo que só reforçou a ilegalidade do ato.
A defesa do soldado Ceconi e suas testemunhas falaram que ele fazia bicos. Qual a posição da BM sobre esta prática?
Não foi uma grande surpresa. Infelizmente, o bico é uma realidade do nosso dia a dia. O que não compactuamos é com o bico que é feito de maneira que concorra com a segurança pública. De modo que o PM, quando está de serviço, não confunda com aquela atividade privada dele. Sempre a orientação é que faça qualquer outro bico que seja, como uma portaria ou um atendente, mas não de segurança. Porque pode e há confusão do momento de serviço e de folga. A reprimenda do nosso estatuto é mais neste sentido. Enquanto não há algum transtorno, acaba sendo relevado. Vale dizer que há casos de PMs que trabalham, entram na Justiça do Trabalho e recebem indenização. A legislação trabalhista reconhece que o PM tenha todos os direitos trabalhistas.
Este tipo de perseguição a motoristas bêbados ou com problemas administrativos é um transtorno enfrentado pela BM?
É um momento que serve para educar a população. Foi levantado no júri, inclusive, que a sensação é de uma violência. Existe um receio geral das pessoas e da própria polícia, que não sabe quem está abordando. Faz partir ao policial o pressuposto de que é um foragido, que tem arma ou que tem droga. É o que passa no nosso imaginário. Mesmo que a placa esteja regular, pode ser um furto ou roubo que acabou de acontecer. A população precisa entender a não fugir da polícia, porque se põe em risco, dificilmente conseguirá escapar e coloca em risco os policiais e todos os terceiros que estão na rua. Internamente, também é falado muito, pois sabemos (desse tipo de fuga). São os dois lados: a população tem que parar e respeitar, seja blitz ou abordagem; e o policial tem que estar consciente do uso cada vez mais técnico e legal da arma de fogo. Os dois lados têm responsabilidade.
A defesa referiu que a condenação dos PMs passaria uma mensagem para os demais policiais a não se arriscarem. Como o comando recebeu esta declaração?
Acho que foi uma tese da defesa para tentar sensibilizar os jurados. Porque o dia a dia nosso é isso, as abordagens fazem parte da rotina. Os nossos policiais têm este perfil, está dentro da cultura e da vontade de ir atrás. Não ficar esperando as coisas acontecerem. É uma percepção geral do Batalhão de não concordar com a conduta que foi feita. Não vejo possibilidade de interferir ou em uma desmotivação. Nós todos sabemos, não apenas a minha figura do comando, como aquela conduta foi anti-técnica e ilegal. É um ato próprio da nossa profissão. Se alguém achar que não deve (realizar uma abordagem) porque irá se expor a um risco desnecessário, escolheu a profissão errada.
Qual a relação do batalhão com estes PMs réus neste momento?
Os dois (absolvidos do homicídio) já estão conosco. Eles continuam na situação de agregado, pois seguem na ativa, mas estão afastados das funções. Não podem exercer qualquer tipo de função, nem mesmo atividades administrativas. Eles cumprem horário de expediente. Sobre a situação dos três, a palavra final não me compete, mas toda a parte administrativa já foi realizada. O parecer local foi pela exclusão dos três. Embora o próprio MP não tenha pedido a perda do cargo, isso não interfere na parte administrativa que pode ocorrer. São esferas distintas.
Qual o balanço que o comandante faz de todo este episódio?
Foi, acima de tudo, uma grande lição. Estamos aprendendo todos os dias. O fato foi vergonhoso, mas, por outro lado, demonstrou que a instituição não concorda. O próprio promotor reconheceu que, se o júri estava acontecendo, o grande mérito era da Brigada e da investigação profunda e dedicada que foi feita pelo capitão (Diego) Soccol. A sensação que tinha a todo momento é que, se fosse possível, gostaria que todos policiais estivessem ouvindo aquele júri. Foi diferenciado e demonstrou o quanto de cuidado se deve ter. Serviu, também, para a sociedade civil ter um pouco mais de consciência dos riscos que o policial está, pois estamos em cima do fio da navalha. Se os policiais são negligentes, a culpa também seria deles. E se, ao invés de três jovens, estivessem três foragidos ou assassinos naquele carro? Foi um grande ensinamento para todos e acho que foi feita justiça. A condenação foi justa. Mas, na minha percepção, a pena é pequena em relação a fraude processual. Não é um problema dos jurados ou do juiz, mas da nossa legislação. A pena de fraude processual é pequena para a gravidade do crime (em um caso como este).