Não é possível determinar quando os furtos e assaltos começaram a ser vistos como uma anormalidade em Caxias do Sul. Registros antigos, do início do século 20, indicavam a prisão de pessoas por furtos de animais, por exemplo, e até mesmo tentativas de latrocínio. A criminalidade contra o patrimônio foi aumentando com o crescimento da cidade. Como as ocorrências nem sempre eram divulgadas publicamente, um parâmetro é o primeiro semestre de 1939, quando a Primeira Região Policial (que abrangia várias cidades no entorno de Caxias) divulgou um total de 22 prisões por furto, nenhuma por assalto e 13 prisões por vadiagem. Os casos de desordem e embriaguez superavam todas os outros delitos, com mais de 250 detenções em seis meses.
Os jornais, porém, indicavam uma insegurança crescente 11 anos depois. Em março de 1950, a polícia identificou sete adolescentes ou crianças reunidas num único grupo para cometer uma sequência de furtos em lojas do Centro. A publicação não se preocupou em debater por que a gurizada estava envolvida em crimes. A solução era prender e punir. O furto de veículos também se tornava um problema. Em julho daquele ano, um carro Ford havia sido levado da frente de um comércio e só seria reencontrado em Garibaldi.
Em novembro de 1950, o Pioneiro criticava a avalanche de crimes na cidade: os ladrões arrombaram lojas e mercados, carregaram objetos de veículos estacionados na frente do Estádio Alfredo Jaconi e tentaram invadir a igreja do bairro Santa Catarina. Na mesma nota, os editores lamentavam o frágil aparelhamento da polícia local. No mesmo mês, o Burgo seria novamente citado como um motivo da violência. Dali, saiu um homem armado para assustar o centro da cidade. A manchete do jornal traduzia o sentimento dos moradores do Centro: Um louco alucinado abala Caxias do Sul.
Dias antes, esse mesmo homem havia trocado uma porca por um revólver. A intenção dele era matar a esposa, com quem vinha brigando muito nos últimos tempos. A mulher trabalhava num restaurante da área central quando foi surpreendida. No caminho, o "louco" ameaçou várias pessoas e confrontou guardas civis num tiroteio.
Três pessoas ficaram feridas antes de o homem tombar morto ao lado do revólver. Sem entender o que havia ocorrido, os caxienses queriam saber os motivos do tiroteio e o Burgo era acusado na imprensa de ter guardado o segredo da venda da arma. A viúva do atirado revelava a vida de miséria e a trajetória de incertezas da família do campo para a cidade. Em dezembro daquele ano, os caxienses se mostravam solidários e se empenhava para angariar presentes para 3.060 crianças pobres.
Leia outras reportagens da série Raízes da Violência
O que o primeiro grande crime da história de Caxias do Sul diz sobre a violência atual
A difícil relação entre autoridades e imigrantes nos primórdios de Caxias do Sul
Disputa por terra motivou rixas mortais entre famílias durante a formação da zona rural de Caxias
No passado, era comum relacionar crimes com pessoas de fora de Caxias do Sul
Só piorou
A coisa parecia ter piorado em 1951. Enquanto a mortalidade infantil era um drama principalmente entre as famílias pobres, outros guris eram detidos por vagabundagem no entorno do estádio do Juventude. Eram jovens pobres sem ocupação e a solução parecia ser levá-los para a delegacia. Mas que geração era essa?
— Com o êxodo rural, as famílias que conseguiam um bom emprego na cidade e colocavam as crianças na escola, tinham uma história diferente. Aquelas que vinham, ficavam sem emprego ou tinham um emprego muito ruim, de repente estavam com problemas e mandavam os filhos complementar a renda. A meninada ia vender cabide, jornal, iam engraxar os sapatos, pedir esmolas no Centro. Junto com essa autonomia vinha o desvio e longe dos pais, esses meninos aprendia malandragem — recorda Migot.
A malandragem nos anos 1950 era diferente. Os ladrões tinham o costume de arrombar moradias e empresas, mas em janeiro de 1952 um caso indicava a mudança de comportamento. Dois assaltantes armados com uma pistola Mauzer e uma chave de fenda renderam um idoso dentro de casa. Um deles escondia o rosto sob um capuz. Aproveitando a distração dos criminosos, o idoso sacou um revólver e matou um dos assaltantes. O outro conseguiu fugir. Como o morto não tinha identificação, a imprensa frisou que a fisionomia dele indicava que não se tratava de um italiano.
A criminalidade não diminuía. Os furtos tornaram-se semanais em Caxias do Sul e os homicídios ocorriam num ritmo maior: um ou dois casos por mês. A cadeia, que deveria ser sinônimo de recuperação, era classificada como um endereço sórdido sem as mínimas condições para abrigar pessoas.
Não era diferente o tratamento com os jovens. Foi o comissário de menores Theodosio Rocha Neto quem emitiu o aviso em junho de 1956. Na prestação de contas ao judiciário, onde destacava o aumento na participação da juventude em delitos entre 1954 e 1955, Rocha Neto revelava que a detenção de crianças e adolescentes por vadiagem e desordem pública havia dobrado de um ano para outro — passando de 26 para 58 casos. Dois dados era muito mais preocupantes: de sete adolescentes flagrados pedindo esmola em 1954, o número chegou a 18 no ano seguinte. Em 1955, 22 crianças e adolescentes haviam sido detidos por envolvimento em furtos, 18 a mais do que no ano anterior.
Com tanta gurizada sendo levada às autoridades, faltava até mesmo dinheiro para alimentar os adolescentes recolhidos na sede do Comissariado.
"E talvez breve há de chegar o dia em que tenhamos de cerrar as portas por falta absoluta de recursos para enfrentar a situação", desabafou Rocha Neto em entrevista ao Pioneiro.
Era visível que uma nova geração se alimentava em um caldeirão prestes a explodir.
— O caxiense talvez não enxergasse a própria responsabilidade sobre isso. Se investiu muito no trabalho, mas e o resto? A violência se instala onde tem ignorância e também onde tem dinheiro. É melhor deixar invisível do que buscar as causas — critica Vania Herédia.