A violência extrema em Caxias do Sul explodiu em 1976, data em que é possível identificar uma preocupação generalizada da sociedade com assaltos e assassinatos, o que desmonta a falsa sensação de que a cidade era tranquila na época do governo militar. Foi a partir deste período que os mortos de uma guerra perdida passaram a ser contados às dezenas. Desde então, já são 3.528 assassinatos na cidade, segundo a estatística obtida por meio de pesquisa em dados oficiais e jornalísticos dos últimos 43 anos.
Três mil e quinhentas pessoas mortas a tiros, facadas, enforcadas, envenenadas ou espancadas deveriam causar espanto e certamente teve um período em que as vidas perdidas instigavam o clamor popular. Mas numa era em que o espetáculo do horror está banalizado, não há mobilizações.
A estatística conhecida de assassinatos dos anos 1970 e 1980 está agregada a um fenômeno social. A população de Caxias do Sul praticamente dobrou de tamanho em apenas 10 anos. O município saltou de 114 mil pessoas em 1970 para 200 mil habitantes em 1980, acréscimo demográfico de 75%, uma expansão jamais repetida em tamanha proporção se avaliada o período por décadas.
A mudança provocou o surgimento de dezenas de loteamentos em todas as direções, a maioria clandestinos, de acordo com o livro A história do crescimento urbano de Caxias do Sul: do milagre econômico à redemocratização, de Túlio Reis da Silva. O autor esclareceu no estudo os efeitos danosos da falta de estrutura decorrente do povoamento descontrolado. Subentendida aparece a violência.
Com uma leva imensa de famílias buscando oportunidades em Caxias do Sul, era natural que aumentassem os problemas de segurança. Mas esqueça os assaltantes folclóricos das duas únicas comunidades da área central que figuraram durante anos como o foco da violência urbana. A nova geração de criminosos era formada por estupradores assassinos, adolescentes empunhando armas com mais desenvoltura do que policiais, sequestradores e muitas quadrilhas. Não bastasse isso, surgiram tramas de maldades entre famílias que jamais haviam pisado numa delegacia, vinganças horrendas entre vizinhos e desafetos e o avanço do consumo de drogas como maconha, metanfetamina e analgésicos injetáveis. O caldeirão fervente dos anos 1950 e 1960 havia entornado de vez, sepultando qualquer esperança de pacificação.
Caxias do Sul passou a ser citada no noticiário estadual como um dos focos principais da violência gaúcha no final dos anos 1970. Logo, as autoridades precisam se apressar com explicações e análises. Os documentos oficiais mostram que ocorreram debates sobre a quantidade impressionante de assaltos e homicídios para os padrões da época. No verão de 1977, a média era de 4 mortes violentas e 81 roubos por mês.
A pressão de vereadores e demais lideranças recaía geralmente sobre o trabalho da polícia, o que pode ter sido um dos erros na condução da situação, pois o Poder Executivo e outros setores não se incluíram na responsabilidade de reduzir a criminalidade. A polícia, por sua vez, respondeu da maneira para qual havia sido treinada: usando a força. Era um tempo em que homens e adolescentes costumavam sair às ruas com a carteira de trabalho no bolso. A Brigada Militar (BM) exigia a documentação para confirmar se o suspeito era trabalhador ou vadio. Fosse visto como vagabundo, o suspeito teria de dar explicações convincentes ou corria o risco de ser levado até a delegacia.
— Teve uma época em que prendíamos criminosos conhecidos, batedores de carteira, de tudo, antes de eventos como a Festa da Uva. A gente levava para o presídio e deixava lá vários dias. Não havia mandado de prisão. Eles eram mantidos no presídio justamente para não cometerem crimes e de fato funcionava. Alguns eram esquecidos na cadeia por vários dias por incrível que pareça. Hoje, isso seria impensável — admite o delegado aposentado Farnei Goulart, que atuou na Polícia Civil de 1976 a 2011.
Havia uma tendência das autoridades em ver exagero na divulgação dos fatos e ocorreram propostas esdrúxulas como censurar a imprensa ou remover imigrantes pobres sem emprego, conforme registrado numa audiência pública na Câmara de Vereadores em maio de 1977. Chegou-se a constatação que poucos criminosos cometiam delitos em Caxias e a maioria era reincidente, bastaria, portanto, reprimi-los.
Quanto mais o poder público estrangulava o crime, mais a situação parecia fugir do controle, afinal outras chagas eram esquecidas entre um discurso e outro. Os números comprovam isso: em 1962, data da criação da Comissão Municipal de Amparo a Infância (Comai), a cidade tinha cerca de 2 mil crianças e adolescentes abandonados e em situação de extrema pobreza. No final da década seguinte, já eram 16 mil jovens nesta situação e Caxias já tinha mais de 20 núcleos habitacionais formado por casebres.
Reis da Silva identificou, no período de 1968 a 1984, um aumento de três para 107 núcleos de subabitação. Muitas crianças e adolescentes sequer concluíam o ensino básico no país com a economia em decadência. Nesse meio tempo, o falecido juiz da Infância e ex-vereador Marino Kury já alertava para os reflexos no comportamento de parte da juventude sem assistência em Caxias, segundo transcrição de audiência pública de 1977:
"Esses delinquentes que hoje estão matando é terceira e quarta geração (...) atendi-os em 1970 com 14, 13, 12 anos e agora os colocamos na cadeia depois de adultos, ferinhas que nós deixamos criar as unhas..."
A geração citada por Kury incluía Topo Gigio, Cigano, Sadi e Melara, entre outros. Somente Topo Gigio havia participado de 50 assaltos em 1978, ano que terminaria com 40 homicídios e quatro latrocínios (roubo com morte). Antes de ser um expoente dos roubos a banco e das facções, Melara praticava pequenos assaltos em Caxias.
Em março de 1979, Melara e Topo Gigio voltariam a figurar nas manchetes de jornais como líderes de um grupo de presos que havia fugido pela porta da frente do presídio, colocando a cidade e as forças policiais em polvorosa. Parte do bando seria capturado e levado para cumprir pena na Região Metropolitana. Anos depois, seriam conhecidos como protagonistas do avanço da bandidagem organizada no RS e do sequestro de um ônibus que resultou na morte de dois agentes penitenciários.
— O Melara era vagabundo nosso, a gente prendia lá no Desvio Rizzo por crimes menores. Daí foi cumprir pena lá para baixo... — relembra Gilberto Corá, comissário aposentado da Polícia Civil.
Os latrocínios se tornaram recorrentes em Caxias do Sul. Entre tantos casos de repercussão, houve uma onda de violência contra taxistas entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, com várias mortes durante assaltos. Nem todos os casos foram esclarecidos.
— Eram menores (de idade) que assaltavam. Eram muitos crimes e começamos a ter medo, muito mais cuidado do que hoje — relembra Valdir Dallegrave, 71, taxista desde 1970, que nunca deixou de lado a cabine de proteção no carro.
Para Farnei Goulart, havia uma explicação.
— Há 30, 40 anos, o criminoso bebia cachaça para cometer um assalto. Logo, apareceu a droga para encorajá-los.
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Em 1980, a estatística de assassinatos era alarmante, pois pela primeira vez Caxias do Sul ultrapassava a barreira dos 50 assassinatos. No ano seguinte, a polícia divulgaria que 1.621 pessoas haviam sido indiciadas por crimes diversos. Entre fevereiro e março de 1981, um grupo liderado por Sadi, 18 anos, o mesmo que havia fugido do presídio dois anos antes, assustou Caxias e região com assaltos e sequestros. O criminoso e um comparsa confrontariam a BM em 9 de março de 1981 após constantes fugas. A dupla havia mantido duas reféns durante 24 horas numa casa na região do bairro Fátima Baixo. O comparsa do chefe do bando morreu baleado na frente do cativeiro, mas Sadi se rendeu.
Levado até a delegacia, o criminoso tentou escapar quando desembarcava da viatura. No caminho, levou três tiros. O fim de Sadi foi flagrado por meios de imagens históricas do fotógrafo Luis Carlos Leite. Acompanhado do fotógrafo, o então repórter e ex-vereador Zoraido Silva aguardava a equipe da BM para registrar a prisão.
— Quando o Sadi tentou fugir, o policial sacou a arma e atirou. Me joguei no chão, fui parar debaixo de um Opala da BM e o Leite seguiu registrando. A sequência de imagens rendeu uma repercussão enorme — recorda Zoraido.
Caxias do Sul sangrava. No mesmo ano, o assassinato de Ivone Leidens se tornaria o primeiro evento midiático em torno de um fato policial na Serra. Durante meses, a imprensa local, estadual e até mesmo do centro do país relata detalhes sobre a investigação que envolvia um milionária apólice de seguro.
A violência galopante extrapolou em 1982 e chegou a 63 assassinatos. O grosso das vidas perdidas parecia ter endereço certeiro nos bairros afastados, nas brigas de bar, na desavença com o vizinho. Não havia mais sentido em culpar apenas morador de fora pela intolerância. Os sobrenomes que circulavam nas ocorrências eram brasileiros, italianos, alemães.
Os anos 1980 eram definitivamente tortos. Novos jovens ascendiam ao posto de procurados e perigosos. Na caça a um assaltante e comparsas, instala-se uma crise na cidade em 1983. A Polícia Civil e a Brigada Militar organizaram a Operação Varredura. Moradias foram revistadas no bairro São Vicente sem mandado judicial e mais de 60 pessoas foram levadas para a cadeia por motivos variados. Entre os detidos, homens e mulheres sem passagens pela polícia ou relação com os bandidos procurados.
Iniciava uma mudança nos paradigmas de combate ao crime. Antigamente, a polícia prendia para só depois apresentar os motivos da prisão e elaborar as provas. Por conta de abusos como esse, as relações mudaram. Na abertura política do governo militar, as críticas eram mais abertas. As ações de repressão e investigação à moda antiga perderam a força. Nasciam ali uma aversão equivocada pelo trabalho das comissões de Direitos Humanos e questionamentos do trabalho de juízes criminalistas. Políticos da direita e da esquerda se acusavam mutuamente.
— Quando começaram as organizações a se preocupar com o comportamento dos órgãos de segurança em relação ao combate o crime, surgiu uma proteção maior do Estado e se perdeu um pouco a possibilidade de se provar um crime. Então, o criminoso começou a se agigantar. Havia truculência policial, os mandados não existiam e a polícia entrava na casa para prender e apreender de tudo. Eram outros tempos, era assim que trabalhávamos para obter as provas e funcionava. Mas foi preciso colocar os pés no freio. Daí o marginal percebeu que poderia usar isso a seu favor e essa evolução a polícia não teve recursos para acompanhar. Só houve uma maneira de recompor a investigação com a Constituição de 1988, que instituiu a prisão temporária — pondera.
— O que matou a polícia foi o mandado de busca e apreensão. A polícia virou touro capado. Antes fazíamos diligência com mandado de busca em branco, mas tu não ia entrar na casa de qualquer um — complementa Gilberto Corá.
Enquanto a sociedade brigava, os bandidos cresciam nas brechas. Em 1986, o ano do Plano Cruzado, das prateleiras vazias e dos fiscais do Sarney, um novo recorde histórico: 81 assassinatos, cinco latrocínios e 431 armas apreendidas. Os anos 1980 eram loucos e prepararam a colheita da próxima década, com o tráfico de drogas e as facções. Em outra ponta, o comportamento nas ruas seria igualmente temeroso com o surgimento do crack e dos conflitos envolvendo as chamadas gangues de adolescentes. O problema é que ninguém havia percebido isso.
— Acho que houve um erro de governos, um erro de não avaliar, de não perceber o que estava acontecendo, de não ver a perda do controle — lamenta o historiador Manoelito Savaris.