Muito antes da frase Quem ama não mata invadir os muros por meio de pichações, muito antes do playboy Doca Street matar a socialite Ângela Diniz em Búzios (RJ), caso marcante da crônica policial brasileira, houve uma regra em Caxias do Sul que considerava a paixão como motivo suficiente para um homem sangrar esposa ou namorada com tiros e navalhadas e ser absolvido pelo assassinato na Justiça. Naquele tempo, era a mulher quem deveria provar ser merecedora da condição de vítima de um estupro e ou de uma agressão. Soa como ficção, mas são fatos comprovados em documentos do Judiciário e da polícia.
Sociólogos, ativistas e historiadores apontam que é dessa velha raiz que nasce o pensamento de que o corpo e o sentimento de uma mulher devem submissão aos caprichos masculinos. Por essa ótica, é fácil compreender por que os feminicídios e suas tentativas não arrefecem em Caxias do Sul e por que campanhas como Os 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres (a programação termina na segunda-feira) são importantes e merecem muito mais valorização de todos.
No passado, tudo parecia invertido aos olhos da sociedade, da lei. Moças e senhoras lutavam para escapar das mãos de quem as via como propriedade. Em antigos documentos da então Colônia Caxias, a doutora em História Luiza Iotti descobriu o caso de cinco jovens que não se conheciam e fugiram de casa. Os fatos ocorreram num intervalo de poucos meses em 1881, cinco anos após o início do povoamento.
Giacomina, Teresa, Annette, Angela e Anna tinham motivos variados, alguns amorosos, para estar longe dos pais, em outras localidades. Curiosa era a alegação das famílias para pedir apoio do governo na tarefa de achá-las: eram adolescentes essenciais para a mão de obra doméstica ou no campo. O raciocínio seguia a lógica cultural da época, pois, nos primeiros anos da imigração, o trabalho dos filhos foi fundamental para a sobrevivência da famílias. Essa regra informal delimitava o comando da terra e dos negócios aos homens; às mulheres, restava a vida doméstica. Para Luiza Iotti, a fuga das cinco jovens também traz o significado de mulheres tentando abandonar uma rotina que pouco tinha a oferecer. O que a historiadora não conseguiu descobrir é que alternativas cruzaram o caminho delas.
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Se na família as vozes femininas ocupavam papel secundário, as tentativas de emancipação em relacionamentos opressores foram estopim para muitas mortes. O registro mais antigo de um processo de feminicídio (homicídio era o termo da época) em Caxias está arquivado no Centro de Memória Regional do Judiciário na Universidade de Caxias do Sul (UCS). A documentação retrata a morte de uma mulher casada com um imigrante francês. Em 30 de junho de 1901, ela foi atrás do marido que jogava cartas num bar na sede central de Caxias. Possivelmente por se sentir humilhado pela interpelação num lugar de diversão masculina, o homem deu uma bofetada e arrastou a esposa para casa. Na moradia, o agressor a matou com um tiro.
Um mês depois, a Justiça condenou o assassino a 30 anos de prisão. Houve uma grande repercussão, segundo notícias em antigos jornais. Baseado no drama caxiense, o poeta Afonso Aurélio Porto produziu um texto para encenação. A discussão em torno do assassinato prosseguiu posteriormente em torno da disputa da guarda do filho do casal. O assassino seria solto 24 anos depois, após cumprir boa parte da pena em Porto Alegre. É um indicativo de que a sociedade condenava a violência e a Justiça dava respostas rígidas. Mas seria sempre assim ou era uma exceção?
Foi Luiza Iotti quem identificou uma sequência de absolvições de matadores e agressores pelo Tribunal do Júri na década de 1930. Ela e o historiador Fabrício Romani Gomes analisaram casos daquele período porque a cidade estava se expandido industrialmente, com mais ofertas de trabalho, o que expandia o horizonte das mulheres, gerando mais conflitos entre os sexos.
Com base nos arquivos do Centro de Memória Regional do Judiciário, Luiza traçou o comportamento dos homens e mulheres dos anos 1930 no artigo A Paixão como atenuante. A especialista encontrou mortes com motivações absurdas. Ela cita o julgamento de um homem que havia matado a mulher logo após ela dar à luz uma criança, em 1932. Semanas antes do parto, ele sonhara com a primeira esposa, já falecida, que havia lhe alertado sobre a traição da segunda mulher com um negro.
— Quando a criança (branca) nasce roxa, o que é comum, ele aproveita a saída da parteira e assassina a mulher. O marido tenta se matar, mas sobrevive e vai a julgamento — descreve a historiadora.
O processo de mais de 200 páginas mostra a defesa tentando provar a perturbação psíquica do réu e a acusação convicta de crime premeditado. Os jurados optaram pela absolvição porque concluíram que o réu "agiu em estado de completa perturbação dos sentidos e da inteligência no ato de cometer o crime". Esse argumento e a tese de legítima defesa da honra seriam usados ao longo de vários processos e vigorariam por décadas, o que explica por que até hoje muita gente desdenha do termo feminicídio e classifica a violência de gênero como um crime movido em nome da paixão. O entendimento no passado era de que o marido cometia o crime num momento de desatino, portanto, em circunstâncias perdoáveis.
— Assim os homens sempre alegaram, através de seus advogados, que eram apaixonados por suas mulheres e não conseguiam admitir a questão do adultério, por exemplo, adultério esse que era mais uma suposição. Como o júri era formado por homens, o assassino era visto como alguém que age em estado de completa perturbação dos sentidos e, por agir assim, acaba sendo inocentado — afirma Luiza.
A inversão de valores era notória. Quase sempre, criava-se a imagem demonizada da mulher. Em janeiro de 1933, uma moradora de Caxias publicou uma carta no jornal O Momento na qual relatava as constantes agressões e humilhações provocadas pelo marido. Forçada a abandonar a casa, ela buscou ajuda de um advogado. Meses depois, o mesmo jornal trazia a informação da separação e de que os filhos estavam sob a responsabilidade do marido. Se quisesse ver as crianças, era a mulher quem precisava mostrar ser honesta e trabalhadora.
As situações vexatórias se multiplicaram. O defloramento era um termo aplicado para moças virgens com compromisso de noivado ou casamento. Muitas vezes, os namorados mantinham as relações sexuais e desapareciam. Não importava muito o sentimento da jovem, mas a maneira como a sociedade enxergaria isso. Para a família, a perda de virgindade sem a consumação do casamento era motivo de desonra. Com medo do julgamento de parentes e vizinhos, os pais buscavam ajuda da polícia para identificar o deflorador e garantir o casamento.
— Ocorreram casos em que jovens eram acusadas de ter seduzido os homens. O réu usa cartas, bilhetes e o comportamento da vítima de ir ao cinema sozinha, de ter bebido e justifica que uma mulher de bem não faria isso. No processo, era a menina quem precisava provar a honradez — aponta Luiza.
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