Prestes a transferir seis traficantes de drogas para um presídio federal de segurança máxima, Caxias do Sul vive um momento crucial em sua história. A ação é vista como indispensável para controlar lideranças que há mais de três anos ordenam chacinas e outros crimes de dentro da Penitenciária Estadual do Apanhador. O movimento para enfraquecer a facção que doutrinou várias biqueiras pela cidade (como são chamados os pontos de venda de drogas) também tem o potencial de desencadear novas disputas entre a bandidagem. Um grupo rival da Região Metropolitana já estaria se organizando para assumir o vácuo que seria deixado pelos criminosos _ o líder local da concorrência também está preso no Apanhador. Portanto, o que acontecer nos próximos meses definirá os rumos da criminalidade em Caxias do Sul. Não será a primeira e nem a última vez.
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É preciso voltar no tempo para entender porque o tráfico influenciou o cotidiano da população e moldou a violência moderna. Diferentemente de outros tipos de delitos, o crime organizado voltado para a venda de drogas não surgiu por acaso no Estado. Foi imaginado há mais de 30 anos por bandidos que cumpriam pena no Presídio Central, entre eles, Dilonei Francisco Melara, que iniciou a vida criminosa por meio de roubos a táxi, ônibus e ao comércio em Caxias do Sul. O Estado, por sua vez, teve forte contribuição para a prosperidade desses grupos ao manter presídios lotados e com estrutura precária numa nítida ausência de política de segurança pública.
Até o final dos anos 1970, o comércio de drogas na cidade era realizado por traficantes que forneciam para consumidores seletos. Com pés e cigarros de maconha apreendidos aqui e ali nos anos 1970, o negócio mudou com as primeiras incursões de assaltantes nas cadeias da Capital no início dos anos 1980. Dependente de um sistema penitenciário frágil (que novidade), a Justiça caxiense se via na obrigação de enviar os piores bandidos para cumprir pena no Presídio Central ou na Penitenciária Estadual de Charqueadas (PEC). Eram as faculdades do crime.
— Lá, eles aprendiam, faziam contatos. Não foi por acaso que começaram a ocorrer assaltos na cidade cometidos por gente de Porto Alegre, de Novo Hamburgo. Prendemos muitos assaltantes daquela região. Eles tinham informações e orientações dos criminosos daqui — relembra o delegado aposentado Farnei Goulart.
O tráfico era centralizado em Porto Alegre. O preso que estabelecia parcerias nos presídios trazia a maconha da Capital para vender em Caxias, segundo Farnei. As biqueiras funcionavam apenas em três comunidades. Como tudo evolui, mais pessoas passaram buscar a droga por conta própria no Vale dos Sinos e nos municípios catarinenses de Lages, Araranguá e Itajaí. Os criminosos furtavam veículos para buscar o carregamento e distribuir para outros revendedores.
Com a popularização da cocaína em escala mundial a partir das remessas da Colômbia, as quadrilhas perceberam que o pó dava mais dinheiro do que a maconha. A cocaína foi apreendida pela primeira vez em Caxias em 1983 dentro de uma lata numa oficina mecânica. Eram 300 gramas da substância, volume considerável para os padrões da época.
— Não havia guerra entre os traficantes até porque eles não se enraizavam. A gente prendia, eles iam embora logo. Mas a insegurança meio que aumentou geral acompanhando esse movimento — lembra o delegado.
Ações de bandidos na Capital ecoam em Caxias
Em setembro de 1985, Caxias do Sul entraria pela primeira vez no olho do furacão das quadrilhas organizadas da Região Metropolitana. João Clóvis de Oliveira Vieira, o Topo-Gigio, outro assaltante que havia iniciado a carreira de crimes na cidade e cumpria pena na Capital, era escoltado num ônibus da Expresso Caxiense por dois agentes penitenciários, algo impensável para os dias de hoje. Logo após o coletivo deixar a rodoviária caxiense, três homens levantaram dos bancos e anunciaram a intenção de libertar Topo-Gigio. Os dois servidores da Susepe reagiram e morreram num tiroteio no ônibus lotado. Uma terceira passageira ficou ferida. Entre os bandidos, estava Melara. O sequestro do ônibus terminou somente em Portão, onde os quatro bandidos escaparam após roubar um carro.
Melara se tornaria muito conhecido no Estado por outros motivos. Migrou adolescente de São José do Ouro para Caxias do Sul nos final dos anos 1970. Na Serra, trocou a agricultura pelas armas. Perigoso, foi levado com comparsas da cidade para cumprir pena na Penitenciária Estadual de Charqueadas (PEC), considerada de segurança máxima. Lá, protagonizou as duas primeiras fugas da história da cadeia. Seria capturado e fugiria outra vez do presídio de Bagé antes ser levado em definitivo para o Presídio Central. Ali, Melara juntou forças com bandidos responsáveis pela formação da primeira facção do Rio Grande do Sul, a Falange Gaúcha. A intenção era unir apenados contra o governo e, é claro, controlar o crime. O grupo promoveu motins e coordenou roubos pelo Estado.
Em 1987, ano do surgimento da facção, o Rio Grande do Sul viveu uma onda de ataques a bancos, foram mais de 90 assaltos, com a participação de bandidos da Região Metropolitana. Caxias do Sul respondeu por 21 desses roubos. No Central, a facção crescia e provoca intrigas internas.
— Melara era um integrante secundário. Mas com a morte do Vico, do Carioca e de outros líderes, herdou a falange. Nascia ali os Manos, que já tinham a intenção de organizar o crime _ revela o jornalista Renato Dornelles, autor do livro Falange Gaúcha — O Presídio Central e a História do Crime Organizado no RS.