Hino oficial da colonização italiana no Rio Grande do Sul, a folclórica Mérica, Mérica é uma ode à jornada de sonhos e superação dos imigrantes no Brasil. Mas houve uma canção sobre uma viúva que chorou o triste fim de dois filhos na nova pátria. Certamente pelo caráter sombrio, a música La morte dei fratelli Biondo di Anna Rech caiu no esquecimento e só resiste na memória de poucos familiares de dois jovens assassinados em 11 de fevereiro de 1923 e de integrantes de alguns corais dedicados à música italiana.
Embora as mortes dos irmãos Biondo tenham ocorrido longe da zona urbana, o caso está inserido dentro de um cenário de conflito político e social que assombrava o Rio Grande do Sul. Em 1923, a instabilidade era provocada pela revolta armada liderada por Joaquim Francisco de Assis Brasil, que pretendia derrubar o presidente do Estado, Borges de Medeiros. Os ânimos não eram diferentes na cidade e já haviam resultado em mortes. Contudo, Pedro e José não eram partidários de nenhuma das partes e a razão dos tiros nunca foi devidamente esclarecida.
A triste canção sobre a dor da viúva Maria Novello, na verdade, é uma adaptação de uma composição popular da Europa a favor do antimilitarismo, o que remontaria ao genocídio da guerra. A versão caxiense traz o lamento da mãe dos irmãos Pedro, 16 anos, e José Biondo, 18, dois agricultores que moravam em Fazenda Souza e foram mortos a tiros pela Brigada Militar (BM) na saída de uma missa.
A letra pode ser encontrada num livro raro do historiador João Spadari Adami. Alguns trechos originais foram alterados e ganharam o acréscimo de outros versos para contar o sofrimento de Maria Novello, moradora de São Braz. Um ano antes dos assassinatos, Maria havia perdido o marido Ferdinando, pai de Pedro e José.
— O Ferdinando era adotado e veio para o Brasil porque os pais temiam pela vida dele, afinal, tinha lutado numa guerra na Itália e estaria marcado — conta Ademir Buffon, sobrinho de Pedro e José.
Jornais da época afirmavam, com base na versão da polícia, que Pedro e José estavam armados e desobedeceram uma ordem do destacamento da BM que havia ido até Ana Rech identificar grupos revoltosos e violentos. Na abordagem, os irmãos, que saíam da igreja, teriam se negado a atender a determinação dos brigadianos e fugiram a galope. No caminho, foram abatidos com tiros pelas costas. O caso gerou grande debate em Caxias e também na Capital devido ao excesso do destacamento. A mãe dos Biondo escreveu uma carta para o embaixador da Itália no Rio de Janeiro pedindo justiça, pois muitas testemunhas teriam visto uma execução e não um confronto.
Em setembro de 1928, os policiais envolvidos nas mortes tiveram a sentença de absolvição confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e o caso mergulhou na obscuridade. Nem mesmo os descendentes dos Biondo sabem muitos detalhes do crime.
O advogado Sétimo Biondo, hoje com 70 anos, nasceu 25 anos após as mortes. Conheceu a história dos tios de forma vaga.
— Meu pai (Marcolino Biondo) não gostava muito de falar sobre isso. Mas sabíamos que meus tios haviam saído da missa, viram a BM e saíram a galope. Ali, receberam os tiros. Não sabemos exatamente como isso ocorreu _ diz Sétimo.
— A Maria teve muita dificuldade até para visitar o túmulo dos filhos. Ela vinha escondida no cemitério porque era ameaçada pelos borgistas (apoiadores de Borges de Medeiros). Os nossos pais não falavam muito sobre o caso. Parece que era para ser esquecido — complementa Ademir.
Os irmãos estão sepultados no cemitério da localidade de São Braz. Na capela, os restos mortais estão depositados ao lado do pai Ferdinando Biondo e de outros familiares. Vanir Mazzochi, 65, parente dos irmãos assassinados, é uma das poucas que sabe entoar a melodia.
— Nosso coral cantava e o de Ana Rech também. Só que ninguém sabe quem fez a música — revela Vanir.
Para a grande Caxias, Pedro e José se tornaram anônimos. A violência ingressava numa nova era na cidade, a era em que mundos diferentes iriam colidir.
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