O aumento do número de homicídios de adolescentes estaria diretamente relacionado ao avanço de facções em Caxias do Sul. Conforme as investigações da Polícia Civil, o envolvimento com as drogas aparece como motivação em 13 dos 25 assassinatos de crianças e adolescentes no município desde 2016. Contudo, 13 investigações seguem em aberto, sendo que em seis mortes não está claro o que motivou o homicídio.
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O envolvimento crescente dos jovens no crime, porém, é visto por autoridades como um reflexo do enfraquecimento da rede de proteção. Esquecidos pelas famílias e pela sociedade, os adolescentes são acolhidos por traficantes que lhes dão armas e instigam o uso da violência como forma de se tornarem respeitados.
Os efeitos devastadores da atual estruturação criminal em modelo de disputa e governança do tráfico, nomeadas de facções, podem ser comparados com a chegada do crack na década de 1990, na opinião do juiz Leoberto Brancher. A mudança aparece na linguagem dos jovens atendidos na Vara da Infância e Juventude de Caxias do Sul há pelo menos um ano.
— Temos visto adolescentes que, de nenhuma vinculação com o crime, passaram a ser associados a situações graves, como homicídios. São jovens sem antecedentes que, por terem contato com outros (adolescentes) que já têm um comprometimento maior (com uma organização criminosa), são colocados em uma função de combate — aponta Brancher.
— A tendência do crime organizado é recrutar cada vez mais jovens, e com idades cada vez menores. Há cada vez mais adolescentes vítimas e também autores de crimes. São jovens com a necessidade de se autoafirmar. Para eles, é um tipo de "reconhecimento": as pessoas na volta lhe têm respeito por ele ser envolvido em atividades criminosas. Eles não têm medo e não têm remorso. Encaram esta atividade criminosa como uma atividade laborativa normal — analisa o delegado Caio Márcio Fernandes.
Mais do que a glamourização do crime, demonstrada na postagem de fotos com armas nas redes sociais, o juiz Brancher destaca uma questão psicológica: a da necessidade de pertencimento do ser humano. Ao se sentir cada vez mais excluído ou inadaptado na família e na escola, paralelamente o adolescente acaba por encontrar a aceitação entre as facções, que lhe oferecem confiança e responsabilidades.
— Esse jovem não se vê parte de nada que vemos como estruturante no seu desenvolvimento. Ele vai achar seu lugar de pertencimento, com alguma possibilidade de autoimportância, um ambiente em que será reconhecido, valorizado e até remunerado – destaca o magistrado.
O enfraquecimento da rede de proteção também é citado pelo coordenador do Conselho Tutelar Norte, Paulo Inda. O conselheiro denuncia que o crime ganha mais força nos bairros em que há menos opções de lazer e esporte para os jovens.
— (O risco é maior) entre 11 e 13 anos, quando muitas famílias que precisam trabalhar acham que o jovem já pode ficar sozinho. São pessoas de bairros desassistidos, que não têm onde ou com quem deixar seus filhos no turno em que não estão na escola. É nesse momento que o adolescente está esquecido, está na rua, que surgem as más companhias para cooptá-lo para o uso de drogas e o envolvimento no crime — relata o conselheiro.
OS NÚMEROS
25 menores de idade assassinados desde 2016
12 inquéritos concluídos
13 crimes em investigação
POR MOTIVAÇÃO:
13 mortes relacionadas ao trafico de drogas.
2 feminicídios.
1 crime sexual (caso Naiara).
1 morte em uma tentativa de assalto.
1 bebê morto durante um feminicídio tentado contra sua madrinha.
1 morte em disputa entre grupos rivais.
6 mortes sem motivação esclarecida.
POR IDADE:
17 anos: 8
16 anos: 6
15 anos: 3
14 anos: 5
12 anos: 1
7 anos: 1
Menos de um ano: 1
Números DPCA
Nos primeiros sete meses de 2018:
6 adolescentes foram vítimas de tentativa de homicídio.
9 adolescentes foram autores de tentativa de homicídio.
27 adolescentes foram flagrados por posse de drogas.
26 adolescentes foram responsabilizados por tráfico de drogas.
OS NÚMEROS
O Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) de Caxias abriga 59 adolescentes, conforme o último balanço divulgado (de 5 de julho). A participação em homicídios motivou a internação de 11 destes jovens. O tráfico de entorpecentes, contudo, aparece apenas em duas internações. A explicação é que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não prevê internação automática para esse tipo de crime, que não envolve violência direta. Os jovens abrigados, então, seriam aqueles em que as outras medidas não tiveram eficácia.
59 infratores internados com idades entre 14 e 20 anos.
11 internados por homicídio.
2 internados por tráfico de drogas.
32 dos internados são de Caxias do Sul.
5 são de Bento Gonçalves.
22 são de outros 13 municípios da região*.
7 jovens entre 17 e 20 anos cumpriam medida em semiliberdade.
* Apenas duas das 17 cidades da comarca não possuíam jovens internados.
“Saíram e nunca mais voltaram”
Em um sábado de manhã, os primos Vitor Gois Neves, 14 anos, e Kelvin Weslen Arceno Vieira, 15, saíram de casa para ajudar uma tia. O trabalho de carregar terra foi visto como diversão, afinal os garotos poderiam sair sozinhos dirigindo o Escort da família. A última viagem até a barragem da Maestra ocorreu pouco depois do meio-dia. Passados dois anos do assassinato – ocorrido em 13 de agosto de 2016 –, as famílias ainda não sabem por que os primos foram executados, no bairro Santo Antônio, com tiros na cabeça.
– Quem não sente falta de um filho? A polícia fala sempre a mesma coisa, que não tem solução, que não sabem quem foi, que não acharam nada... Só sabemos que eles saíram e nunca mais voltaram – lamenta Elisabete de Meira Gois (à esquerda na foto abaixo), mãe de Vitor.
O caso é emblemático justamente porque os primos não tinham envolvimento com drogas ou grupos criminosos. Os dois estudavam na Escola Municipal Dolaimes Stedile Angeli (Caic) e eram conhecidos por serem participativos. Kelvin se destacava por sua capacidade de fazer sorrir.
– Era um guri muito alegre, que dava risada com todo mundo. O sonho dele era completar 18 anos e tirar a Carteira (Nacional de Habilitação). Sonhava em viajar para lá e para cá. Pensava em trabalhar com caminhão – lembra a mãe, Maria Aparecida Arceno.
Em dois anos sem respostas, elas começam a perder a fé.
– Se fosse filho de rico já teria sido desvendado, né? Quantos outros crimes vemos que já foram esclarecidos. Sempre dizem que não existe crime perfeito. Se não existe crime perfeito, o que existe é crime mal-investigado – desabafa Maria.
– Vamos ficar sem saber o que aconteceu? – questiona Elisabete.
Procurado pela reportagem, o delegado Caio Márcio Fernandes ressalta a complexidade do caso. A primeira linha de investigação, a de crime por ciúmes – Kelvin teria sido ameaçado pelo namorado de uma ex –, foi descartada ao longo da investigação. Como não tinham envolvimento com drogas, é cogitada a hipótese de que tenham sido confundidos com outros adolescentes e mortos por engano.
– Trabalhamos com várias linhas e a investigação segue. Pretendemos concluir (o inquérito) até o final do ano. Enquanto tiver alguma pista, continuaremos (investigando) até o limite. Iremos esgotar toda e qualquer possibilidade – afirma o chefe da DPCA.
Abaixo, confira uma linha do tempo das mortes de menores em Caxias: