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A ralé da bandidagem, o tipo de ladrão que arromba casas e comete pequenos assaltos, parece ter entendido a ameaça cheia de gírias estampada em grafite num grande muro do bairro Fenachamp, em Garibaldi. A mensagem sobre a proibição de roubos na vizinhança surgiu há três meses, dando uma falsa sensação de que traficantes de drogas estão preocupados com a segurança dos moradores.
A vida real contraria essa falácia. Desde que um grupo da Região Metropolitana de Porto Alegre despertou o interesse pelo mercado de drogas de Garibaldi, o Fenachamp é o bairro mais acossado por uma facção que se vende como protetora. Em menos de dois anos, pelo menos 25 famílias deixaram a comunidade por ordem das quadrilhas, por medo de represálias ou porque não suportaram conviver com assassinatos horrendos, bandidos ostentando armas em vielas e becos e o vaivém de viciados em drogas. A ameaça no muro apenas realça um cenário espantoso e dramático para uma cidade que se orgulha de figurar na lista das regiões mais desenvolvidas do Estado e do país.
Garibaldi, com 33 mil habitantes, não está isolada nessa onda de brutalidade comandada das celas de presídios e que coloca na mira pessoas sem relação com a criminalidade. Municípios da Serra com menos de 40 mil moradores, onde o efetivo policial é baixo, sofrem os efeitos da disputa pelo controle do tráfico regional. O avanço dessa chaga é organizada. Criminosos locais associados aos barões da droga do Vale dos Sinos ou da Região Metropolitana querem estabelecer um controle maior sobre pontos de venda já consolidados, com farta clientela e aumentar os lucros. São Marcos, Picada Café, Nova Petrópolis, por exemplo, assistem a uma sequência perturbadora de execuções com corpos fuzilados, queimados e desmembrados, situações comuns nos grandes centros, como Rio de Janeiro e Porto Alegre, e com semelhanças das execuções ocorridas em Caxias do Sul. Há desfechos tristes, caso de um garçom assassinado porque a casa dele interessava à logística do tráfico ou de uma jovem de 19 anos morta por ter aceitado carona de um homem marcado para morrer.
Uma comunidade açoitada pelo crime, caso do bairro Fenachamp, não pode ser aceita como uma situação normal. A expulsão de duas famílias se tornou pública, provocando alvoroço na população e a mobilização da polícia e de serviços da prefeitura. Revelou um problema para o qual o poder público local ainda não está preparado para lidar. E tudo bem perto do parque que leva o nome da cidade para o resto do país.
Ter colocado câmeras na frente de casa como medida de segurança contra roubos foi que o bastou para uma das famílias se tornar indesejada na comunidade no final do ano passado. Os chefes do tráfico local, associados a líderes da Região Metropolitana, não gostaram. Em pouco tempo, a relação entre os bandidos e os moradores complicou. Ficou perigoso para o pai trabalhador permanecer com os filhos no Fenachamp. Em novembro passado, bandidos invadiram a casa, quebraram móveis e eletrônicos. Dias depois, os traficantes mandaram queimar dois carros na frente da moradia. A família abandonou a casa sob escolta da polícia. Hoje, eles vivem em outro Estado.
Meses depois, foi a vez de outro morador sair do Fenachamp. Alertado por um conhecido sobre as promessas de morte, o trabalhador teve que deixar o bairro onde nasceu e viveu por muitos anos. A história dele é omitida para evitar represálias. Essas são apenas os casos conhecidos, pois a maioria dos casos semelhantes permanece no anonimato. Os bandidos, por sua vez, seguem impunes, traficando e impondo o terror para garantir os negócios. Na semana passada, a reportagem esteve na comunidade para fotografar as pichações que ostentam o nome de uma facção e a ameaça grafitada (citada no início da reportagem) num muro do bairro. A visita durou menos de cinco minutos. Enquanto o motorista da equipe manobrava numa das vielas às margens da Rua Circular Fenachamp, dois homens saíram de uma casa, um deles com um pedaço de pau. A dupla caminhou em direção ao carro forçando a saída da equipe.
Regras para evitar chamar a atenção da polícia
Após sucessivas ações policiais para prender assaltantes e cumprir mandados de busca de foragidos, o crime organizado decidiu impor regras para tirar o bairro Fenachamp, em Garibaldi, do radar da polícia. Além do alerta proibindo crimes contra moradores, há outra determinação: para ingressar de carro na parte onde estão concentrados os pontos de venda de droga, o motorista é obrigado a manter a janela do carro aberta para que os bandidos vejam quem está circulando. A ordem havia sido pintada sobre o asfalto e foi apagada, mas a informação circula de boca em boca. Motociclistas já sabem que precisam tirar o capacete. À noite, quando a atividade de usuários de drogas é maior, as famílias evitam sair às ruas. Não querem ter a chance de serem consideradas testemunhas de crimes. Há relatos de profissionais que prestavam serviço no bairro e optaram por não trabalhar mais na comunidade. Quem não é do Fenachamp, por sua vez, geralmente é barrado para se identificar.
A teoria de que o crime ocupa o lugar onde o Estado está ausente não faz sentido ali. O bairro, com cerca de 500 famílias, tem ruas asfaltadas, iluminação pública (vandalizada pelos traficantes em pontos estratégicos), creche, escola com contraturno, ginásio de esportes, associação de moradores e coleta de lixo.
— Começou a ficar ruim nos últimos sete ou oito anos, e piorou agora, com essa história de facção. Eles circulam com arma na mão pela rua, em pleno dia. Dão tiro de 12 (espingarda), de pistola. Não estão nem aí. Entregam drogas na rua — diz uma testemunha.
Dizem que o tráfico no Fenachamp é comandado por dois homens de uma mesma família, a serviço de criminosos da Região Metropolitana. Em fevereiro, um suspeito de envolvimento no rumoroso ataque a um carro-forte na BR-470 em Bento Gonçalves, veículo parado a tiros de metralhadora de guerra, foi encontrado na casa de um desses traficantes. É um indicativo das estreitas ligações dos criminosos locais com bandidos de fora.