Nas próximas semanas, a Secretaria de Segurança do Estado deve apresentar um projeto de enfrentamento ao crime organizado com foco no interior. Essa é a perspectiva do titular do Departamento de Polícia do Interior (DPI), Fernando Sodré. O delegado reconhece que a Serra é alvo das facções justamente pelo fator econômico. Outra alternativa para reduzir a ações das quadrilhas é a instalação de núcleos especializados no combate à lavagem de dinheiro, um fator essencial para minar o poderio financeiro dos grupos. Confira abaixo os principais trechos da entrevista do Sodré.
Pioneiro: Como o DPI avalia avanço das facções na Serra?
Fernando Sodré: Nossa preocupação já vem de algum tempo, pois é um movimento que surge dentro do sistema carcerário. Onde tem sistema carcerário com número grande de presos, a tendência é esse processo de uma facção se instalar e aumentar a atividade. Na Serra, temos algumas facções identificadas e a nossa prioridade é investigar e trabalhar no monitoramento e enfrentamento delas em nível de Polícia Civil. É lógico que é uma estratégia institucional, de Estado, não é local. A Polícia Civil tem feito a parte no que tange à investigação em conjunto com outros órgãos, como Brigada Militar, Ministério Público e Susepe. No ano passado, na operação Pulso Firme, por meio de um trabalho de investigação e inteligência, foram levados para os presídios federais 27 líderes de facções. Na Serra, tem esse acompanhamento também. É meio relativo a ideia de expansão, o que temos é uma exteriorização de pessoas que se dizem vinculadas à facções. Algumas estão vinculadas e outras usam isso como escudo para outras situações. Na verdade, há algum movimento para cidades de interior, tanto que as cidades maiores, com poder econômico, como Caxias do Sul, estão no interesse desses criminosos.
Quantas facções foram identificadas na região?
Temos pelo menos três operando aí. São três grupos que têm se apresentado até porque tem conflito entre eles, mas a atuação é mais forte por parte de duas facções.
Facções em Garibaldi:
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Nas cidades menores onde o efetivo da BM é baixo e a própria Polícia Civil não tem estrutura, estão surgindo crimes horrendos, com corpos queimados, fuzilamentos. Essas pequenas cidades estão sendo monitoradas?
Sim, dentro do trabalho de investigação que é feito no todo. A Polícia Civil deve apresentar agora na Secretaria de Segurança, esse mês ainda ou no começo do mês que vem, um projeto de enfrentamento do crime organizado a nível de Estado, principalmente, voltado para fortalecer o interior. O interior hoje trabalha com algumas especializadas e delegacias distritais, mas precisamos ter uma estratégia de enfrentamento. Em alguns lugares, o enfrentamento já está acontecendo, diríamos que em seis municípios maiores, onde se identifica bem a ação de facções, bem claramente instalada no sistema carcerário e atuando fora dos presídios. E há outras em que a gente tem que atuar bem na prevenção, onde eles não chegaram ainda ou estão começando a se instalar. Em algumas cidades, realizamos mais de uma operação para enfrentar esses grupos e só não se instalaram porque conseguimos antecipar isso. Mas tem que ser um enfrentamento institucional, não só da polícia, mas do Estado.
Na Serra, há presídios em quatro cidades pequenas. Essas cadeias também estão com ligações de grupos criminosos?
Sabemos que a partir dos presídios maiores, as facções costumam recrutar membros e esses apenados, transitando pelos presídios menores, acabam levando a ideologia criminosa. Em alguns lugares se estabelecem, outros não. Em alguns presídios, fora da Serra, no interior, chegou gente batizada pelas facções e não colou, não se proliferou a ideia. Em outros, a ideia se fundamentou. Dependerá muito das pessoas vinculadas. Agora, nos presídios menores, o controle é maior, a tendência é mais difícil de ocorrer do que nos grandes presídios.
O cenário na Serra é assim: o traficante de fora chega na cidade e faz a proposta para vender o produto dele. Quando não há acerto, ocorrem assassinatos para a tomada de território.
É uma maneira de agir das facções em geral, é a disputa pelo território de venda. É um problema muito sério porque a droga tem um mercado cativo e, por ter isso, acaba sendo um produto que os criminosos têm interesse de vender. Sempre há uma linha de sucessão nesse grupos, sai um e entra outro. Não podemos mais tratar isso como uma coisa rotineira. A expansão das facções criminosas no Brasil necessita de medidas urgentes a nível nacional, é um projeto nacional de enfrentamento.
Em Gramado, identificaram uma facção que usava lojas para lavagem de dinheiro.
O combate à lavagem de dinheiro é a grande orientação institucional da Polícia Civil hoje no enfrentamento dos criminosos. Além de enfrentar o crime antecedente (o tráfico), estamos trabalhando fortemente no crime de lavagem porque, aí, se asfixia as facções do ponto de vista financeiro, é essencial para tirar o poder delas. Só que a investigação do dinheiro é técnica, depende de muitos elementos, precisamos dos contatos do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras do Ministério da Fazenda), precisamos confirmar a ocultação e dissimulação de bens, precisamos mostrar essa dissimulação, temos de provar o crime antecedente. É uma série de questões que levam um tempo maior de investigação. Nesse projeto de enfrentamento ao crime organizado, a chefia está programando e organizando a formação de núcleos de lavagem de dinheiro em todo o Estado, inclusive pelo interior, para quem a gente possa fortalecer essa estratégia.
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Teve um caso em Picada Café em que um garçom acabou morrendo por não ter cedido a casa para o tráfico. Isso não se via na Serra. O que se pode dizer para a população que assiste a esse tipo de crime mais comum nas grandes capitais?
É uma pergunta complexa. Primeiro, as pessoas têm de saber que o consumo de substâncias ilícitas acaba patrocinando esse processo. Lógico, as pessoas têm dependência química, mas precisam procurar ajuda para enfrentar o vício e diminuir a demanda. Também devemos trabalhar o programa de prevenção de drogas e auxiliar os órgãos de repressão com informações, com elementos, para que a gente possa fazer o enfrentamento. Obviamente, não vou pedir para as pessoas irem declarar na delegacia e assinar o próprio nome porque elas têm medo, e com razão. Volto a dizer: há necessidade, do meu ponto de vista, de a sociedade se dar conta disso, da gravidade da situação, de que temos que enfrentar a drogadição com políticas preventivas e também com repressivas. Não só tratar, porque não vai resolver o tráfico, ou não só reprimir, que não vai diminuir a demanda. Temos de trabalhar em todos os setores da sociedade, para reduzir a violência do tráfico, que é o principal elemento dos crimes horrorosos que temos visto.
Como o senhor classifica a posição da Serra no interesse do tráfico?
Esse interesse não é exclusivo na Serra. Interessa aos traficantes todos os locais onde há uma circulação de dinheiro razoável. Caxias é uma das cidades mais pujantes do Estado, onde há um mercado consumidor grande pela grande quantidade de pessoas. É uma estratégia de negócio. Ou seja, a cidade ter esse poder econômico se torna, sim, objeto desses mercadores da morte. Como o mercado é bom, a disputa entre os grupos se acirra. Lugares onde o poder aquisitivo é menor também têm tráfico, mas é menos violento, pois gera menos dinheiro, é tráfico menos intenso, não é tão lucrativo e não há tanta disputa. Mas precisamos ter uma mudança muito grande na perspectiva de enxergar todo esse problema que envolve a drogadição, o tráfico, a violência e as facções criminosas. Se não repensar a forma como o Estado brasileiro tem enfrentado essas questões, corremos o risco de realmente caminhar para uma situação mais difícil do que já está hoje. O que é política de prevenção? O que é política de repressão? Onde vamos atuar? Até que ponto vamos reprimir? Temos que ver como trabalhar a questão da demanda, ou vamos manter essa demanda (ações de apreensão) quase livre hoje de busca de drogas? É muito preocupante a questão das facções criminosas. Isso tem deixado a violência no Brasil em números absurdos, níveis quase inacreditáveis, morre mais gente no Brasil por dia do que na guerra da Síria. Ainda não estamos com uma violência tão intensa como no México, que tem um problema muito grande de facção, e lá é mais cruel do que aqui, mas o nosso nível de incidência criminal está muito alto. Tivemos índices de redução de crimes nos últimos tempos no Estado, mas precisamos trabalhar muito para reduzir a níveis aceitáveis.