Construída abaixo do leito da estrada e protegida por uma barreira de árvores, a casa do garçom Alexandro Grott, 32 anos, era ideal para se viver na discrição em Picada Café, também conhecida como a Cidade dos Lírios na famosa Rota Romântica. Da rua ou de qualquer outro ponto do bairro Joaneta, era quase impossível visualizar o que acontecia na propriedade. No final do mês passado, quando a notícia de que Grott foi assassinado dentro da moradia veio a público, os moradores do Joaneta e da vizinha Linha Jammerthal ficaram estupefatos. A morte de alguém conhecido na vizinhança já era impactante por si só, mas o motivo do crime era igualmente chocante: o garçom levou um tiro na cabeça por não ter cedido a casa para uma facção criminosa da Região Metropolitana. Foi um baque para muita gente que imaginava estar numa comunidade tranquila e fora da rota dos grupos organizados do tráfico de drogas. Em 10 anos, apenas um homicídio havia sido registrado em Picada Café, cidade de 5,5 mil habitantes, a maioria de descendência germânica.
— Morávamos no paraíso, não tinha crime. Onde ele residia, era um buraco, ninguém ia lá, não tem como saber o que acontecia. Dá pânico saber que fizeram isso — relatou ao Pioneiro uma mulher.
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Construída pelo pai de Grott numa área afastada, a casa está situada na Avenida Vicente Prietto, estrada que nasce na área urbana de Picada Café, passa pela zona rural e liga o município a Linha Imperial, em Nova Petrópolis. Natural de Ivoti, Grott morava desde os 10 anos na cidade. Já adulto e com o casamento desfeito, ele acabou indo morar com o pai, idoso adoentado por conta um acidente vascular cerebral (AVC). Em 2016, com a morte do pai, Grott ficou na companhia da madrasta. Oito meses antes do crime, a mulher foi embora e o garçom passou a viver solitário, exposto a relações que complicaram a vida dele. Ele sobrevivia do trabalho como garçom aos finais de semana, em Nova Petrópolis, segundo a Polícia Civil.
Um dos conhecidos de Grott já era fichado na polícia de Picada Café como um pequeno traficante. Nos últimos tempos, o criminoso gostava de ostentar a proximidade com uma facção, bobagem para muitas pessoas. O traficante percebeu que a moradia de Grott, onde já havia morado de favor certa vez, era estratégica para instalar um ponto de venda de drogas. Em data incerta, o criminoso se mudou para a propriedade e trouxe companhias de outras cidades. No início de julho, Grott deixou de manter contato com a família e os vizinhos. O desaparecimento dele foi oficializado na delegacia dias depois.
O sumiço começou a ser desvendado durante um cumprimento de mandado de busca na moradia. Os policiais da cidade imaginavam que o garçom pudesse ter morrido em casa por problemas de saúde, por exemplo. Quando a equipe ingressou com a viatura numa estradinha de acesso à casa, toparam com um homem na frente. O suspeito se assustou e fugiu pelos fundos, sendo seguido por um segundo homem. Dali, a dupla se embrenhou no mato e atravessou o Rio Cadeia, de onde não foram mais localizados.
Na casa, os agentes se surpreenderam ao localizar um quilo de maconha, 20 gramas de cocaína, uma arma, uma balança, uma faca e um celular. Porém, não havia sinais de Grott. A polícia de Nova Petrópolis teve acesso a um vídeo gravado no celular em que dois homens, que não mostram o rosto, comemoram uma atrocidade. Segurando os restos de um corpo carbonizado, que seria de Grott, um dos bandidos usa uma faca e uma pá para separar as partes do cadáver. A imagem grotesca era o recado para o chefe de uma facção e a prova de que um assassinato havia sido cometido. As imagens levaram à identificação de dois envolvidos no crime e confirmaram a influência da quadrilha que fatiou o tráfico em dois mercados distintos em Picada Café e Nova Petrópolis. Uma das frases dos criminosos proferida dentro do diálogo macabro registrado em vídeo resumiu o contexto do assassinato:
— É nós aí família, tá na mão, corpinho desfiguradinho — diz um dos assassinos.
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Lucro seria muito baixo
A investigação da Polícia Civil tem convicção de que o cadáver carbonizado que aparece no vídeo é de Grott. Os agentes localizaram pedaços de ossos num córrego da propriedade, que podem ser humanos. A análise que apontará se os restos mortais eram do garçom depende do Instituto Geral de Perícias (IGP). O quebra-cabeça do assassinato só foi desfeito com a prisão de um dos envolvidos no crime, no início de agosto. Após a batida policial na moradia, um dos bandidos buscou refúgio em São Lourenço do Sul, onde acabou sendo localizado. O outro criminoso envolvido no assassinato está foragido.
Descobriu-se que Grott foi executado e teve o corpo incendiado num tonel, nos fundos da propriedade. Na mesma noite ou em dias posteriores, os bandidos decidiram se livrar dos restos. Um deles queria jogar as partes no Rio Cadeia, mas o outro achou que ainda era cedo demais e chamaria a atenção.
O assassinato teria ocorrido durante uma discussão. A hipótese mais provável é de que o garçom não queria transformar a casa deixada pelo pai num ponto de tráfico. Depois que Grott morreu, os bandidos limparam a moradia para eliminar vestígios. Tanto que a perícia esteve no local numa primeira vez e não achou pistas relevantes. Com o dono da casa removido, os traficantes passaram a guardar e vender no local drogas remetidas de Porto Alegre.
Parte dos lucros obtidos com a clientela da região era enviada para a facção. Segundo a apuração da polícia, a liderança da facção recebia entre R$ 300 e R$ 700 por semana dos operadores do esquema na casa de Grott. O rendimento não estava agradando, uma vez que os traficantes imaginavam que o ponto seria mais lucrativo. Contudo, o grupo permaneceu ali por ser um ponto afastado do Centro e longe dos olhares da Brigada Militar (BM).
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Desde a descoberta do crime, a moradia está vazia. A casa é muito simples, de madeira, sem luxo algum. Ainda é possível ver restos de comida sobre uma mesa, roupas caídas num sofá surrado e muita sujeira. Num galpão, restaram móveis velhos, lenhas e ferramentas enferrujadas.
Para amigos próximos de Grott, é difícil aceitar que ele teve um fim tão brutal e justamente pelas mãos de um flagelo que estava restrito às grandes cidade. A lembrança mais forte de que um dia houve uma família na casa dele é um Gol antigo, que pertencia ao pai de Grott. O carro está parado há anos nos fundos da propriedade. No vidro traseiro do veículo, encoberto pela poeira, uma frase escrita à mão e adornada pelo desenho de um coração reforça a saudade que o garçom tinha da vida antiga: "Te amo papai".