Pela primeira vez em 17 anos, a Parada Livre de Caxias do Sul não será realizada em um local público. O evento marcado para este domingo (25) é, para os organizadores, momento máximo de visibilidade, resistência, alegria e busca da plena igualdade de direitos para a população LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas intersex).
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Neste ano porém, a busca por um espaço para a Parada demonstra um recrudescimento no apoio institucional ao movimento.
— Eu não vejo questão de preconceito, eu vejo perseguição (da prefeitura) e uma total falta de visão sobre o que é o movimento LGBT. A gente vê pelas redes sociais as pessoas dizendo que no palco da parada livre acontece sexo, as pessoas estão nuas. Nesses 17 anos, isso nunca aconteceu. Até porque eu não permitiria, têm crianças, familiares, senhoras. Eu estou em choque, achava que pelo menos (o município) fosse ceder o espaço — acusa Sandro da Silva, um dos integrantes da comissão organizadora.
A prefeitura de Caxias proibiu que o evento ocorresse na Rua Marquês do Herval, ao lado da Praça Dante Alighieri, onde foram realizadas 15 edições da Parada, e também negou autorização para a Praça das Feiras e a Rua Plácido de Castro, outros locais solicitados pela organização. O único ponto sugerido pelo município — de forma mandatória desde o primeiro contato, em agosto — foi o Centro Cultural Dr. Henrique Ordovás Filho, no bairro Panazzolo. Os organizadores consideram a área inadequada para um evento cujo público circulou em torno de 5 mil pessoas em anos anteriores.
A saída foi recorrer a um estacionamento privado no bairro São Pelegrino. É provável que a Parada Livre atraia as milhares de pessoas esperadas pela organização, mas a proibição do município joga uma sombra sobre a edição de 2018.
O secretário da Cultura de Caxias, Joelmir da Silva Neto, foi o indicado pela administração municipal para falar sobre o tema. Procurado na quinta-feira (22) pelo Pioneiro, no entanto, ele disse que já havia dado duas entrevistas sobre o assunto, que estaria "encerrado", e não quis se manifestar. Em nota, a pasta informou que a sugestão pelo Ordovás se deu "porque, na data solicitada para a realização do evento, o perímetro da praça Dante Alighieri, que tradicionalmente recebe a Parada, estará ocupado por maquinário e operários que trabalharão na montagem da estrutura e cabeamento elétrico para o Natal".
Na quinta-feira, dia 15, o secretário havia dado declaração semelhante à Rádio Gaúcha Serra. Desta vez, a justificativa para a negativa de uso da praça era a necessidade de envolvimento de outras secretarias para organizar o evento ali. No sábado, 17, ele reforçou a mesma versão e disse que o Ordovás seria o local mais indicado para receber um "evento cultural".
Na mesma tarde, a Marcha para Jesus, com público esperado em 5 mil pessoas, virtualmente o mesmo da Parada Livre, acabou levando centenas de pessoas às ruas centrais da cidade. O evento organizado por congregações evangélicas partiu com carro de som da praça João Pessoa e promoveu caminhada pela Rua Sinimbu até a prefeitura.
O próprio prefeito Daniel Guerra (PRB) e parte de sua base aliada na Câmara de Vereadores participaram da marcha, que culminou no estacionamento do Centro Administrativo, onde foi montada uma estrutura com palco para apresentações.
Em novo contato nesta sexta-feira (23), por meio da assessoria de imprensa, o secretário da Cultura informou que "entre os critérios de análise dos eventos está o cruzamento de datas com os demais, o plano de ação das secretarias que irão prestar o apoio institucional, entre outros. No caso do evento citado (a Parada Livre), a diretriz é de fortalecer com o direcionamento de alguns eventos o caráter cultural do Ordovás, tornando cada vez mais conhecido na sociedade sua contribuição".
Novo decreto dificultou organização
Enquanto o vaivém de ofícios entre a prefeitura e a organização da Parada estava apenas iniciando, o município publicou no Diário Oficial o decreto 19.736, em 14 de agosto, regulamentando os eventos temporários na cidade. A norma padroniza o processo de solicitação para o uso de áreas públicas e privadas para eventos "esportivos, comerciais, sociais e culturais, de caráter privado" e unifica os trâmites entre secretarias municipais.
Dez dias depois, em 24 de agosto, a comissão da Parada Livre solicitou a permissão para realizar o evento nos locais alternativos, depois da negativa do dia 1º. E foi em 13 de setembro que o chefe de Gabinete Julio Cesar Freitas reiterou a "sugestão" pelo Ordovás.
Após a segunda negativa, a organização acabou alugando o estacionamento na esquina da Rua Os Dezoito do Forte com a Rua Marechal Floriano. Foi ali que Jair Zauza, advogado da comissão, diz ter sido alertado que, mesmo se tratando de um evento privado em local privado, deveria pedir autorização do poder público.
— Fizemos um ofício simples, comunicando a Secretaria do Urbanismo. Aí veio uma resposta bem preocupante, que nos exigia para a continuidade do pedido a garantia de que teria uma ambulância, PPCI (Alvará de Prevenção e Proteção Contra Incêndios) completo, ART (Anotação de Responsabilidade Técnica) para palco e tudo o que fosse montado e banheiros químicos, que já tínhamos conseguido. Aí complicou, porque não tínhamos fundos para isso.
A resposta da secretaria do Urbanismo, com as novas solicitações, foi enviada em 1º de novembro. Na última terça-feira (20), a comissão conseguiu entregar a documentação solicitada, mas ainda tenta arrecadar o valor necessário para quitar todos os custos.
A rigidez com que a Parada foi tratada, para a comissão, não condiz com outros eventos realizados após o decreto de agosto. Na tarde desta sexta-feira, a comissão denunciou ao Ministério Público a proibição de ocupar espaços públicos. Os organizadores também consideraram entrar com ação judicial exigindo a realização da Parada num dos locais requeridos. Porém, como o PPCI do estacionamento contratado já foi pago, eles dizem que não teriam como custear um novo projeto. Em 2019, no entanto, é provável que a questão se torne mais uma briga judicial envolvendo o governo Guerra.
Ainda assim, a principal mensagem que os organizadores querem passar à população é a de um evento que luta por direitos iguais e contra a discriminação, aponta Alexandre Severo, membro da comissão.
— É uma questão de visibilidade, dizer que a gente existe, por mais que pessoas nos coloquem à margem, como promíscuos, como depravados. Há aquela imagem de que a Parada só acontece porque tem sacanagem,esse é o momento de mostrar que isso não acontece. Têm idosos, crianças, é um momento de alegria. Para poder festejar quem somos, porque hoje a nossa forma de viver, que é normal, incomoda, acham que somos errados, doentes, tentaram até curar a gente. A parada é para resistência, visibilidade e alegria — reforça.
"Não houve tratamento diferente", diz secretária
O Pioneiro buscou esclarecimentos junto ao chefe de Gabinete do Município, que assinou os primeiros ofícios negando a realização da Parada. Ele afirmou, porém, que somente o secretário da Cultura falaria sobre o assunto.
A secretária do Urbanismo, Mirangela Rossi, aceitou conversar com o Pioneiro sobre a norma e sobre os trâmites para a autorização do evento. Ela adianta que, para o próximo ano, a organização da Parada pode realizar nova solicitação de outro espaço.
— Pode se conversar, o ideal é que se protocole o pedido, a gente avalie as datas, e veja a localização — aponta.
Pioneiro: a organização da Parada Livre diz ter encaminhado a documentação final para a pasta nesta semana. O evento está autorizado?
Mirangela Rossi: eles já tinham encaminhado fazia um tempo a solicitação, foi informado a questão do decreto, mas eles ainda não tinham definido o local. Com os documentos na mão, encaminhamos em no máximo 24 horas uma liberação. Eles já sabem tudo o que precisa, muito provavelmente vai ser autorizado.
O decreto que regula os eventos temporários recebeu críticas ser muito restritivo, no sentido de impedir a reunião entre pessoas. Ele foi inspirado em outras experiências?
Na verdade, a gente consultou vários decretos nesse mesmo modelo, principalmente em cidades do Nordeste, onde fazem o Carnaval. Existe no Código de posturas a informação que tem que ser solicitado ao município a autorização para eventos, mas não um regramento específico. Começou a entrar muitas solicitações pedindo para ajudarmos com a infraestrutura, e o município estava com poucas verbas, a gente começou a autorizar o evento e negar infraestrutura. Temos indeferido alguns eventos sim, principalmente quando a gente vê que tem risco à população. Mas a questão do local vai muito da previsão de outros eventos esse decreto é justamente para conseguir que a gente tenha uma agenda conjunta com outras secretarias. Quando precisavam da Guarda Municipal, ou da Fiscalização de Trânsito em mais de um local no mesmo dia era um transtorno. Mas não é que a gente tenha um tratamento diferente, temos dado a orientação para todos. Quando o volume de pessoas é muito grande, sempre conversamos com a Codeca, o Samae, e o Trânsito e a Guarda sempre são parceiros. A gente tenta conciliar, nem sempre conseguimos atender todo mundo.
Por que a Parada não pôde ser realizada na Praça das Feiras ou Plácido de Castro?
A primeira solicitação foi a Praça (Dante). Eu não participei muito, quem faz a agenda das praças é a Semma (Secretaria do Meio Ambiente). A mim, cabe cuidar se todo mundo está informado, se houve algum impedimento e qual a documentação precisa apresentar. O que me foi passado é de que a Praça não teria condições, porque estaria muito próximo da época de colocação da decoração de Natal. Na época, a gente tinha oferecido também a Praça das Feiras, que num primeiro momento eles não quiseram.
Essa sugestão não foi registrada?
Não, foi conversado possibilidades, e então a gente ofereceu o Ordovás. No início, eles bateram muito o pé na questão da Praça, e aí no fim a gente deu a possibilidade do Ordovás e acabou não cedendo mais a Praça das Feiras, não sei se havia outros agendamentos. O cronograma da Secretaria da Cultura ali sempre foi muito extenso. Isso é o que eu tinha de conhecimento. E, no fim, acabaram me procurando com alguns locais privados, e aí eu fui pontuando o que precisaria.
A comunicação inicial da organização foi com o chefe de Gabinete, quando nem havia o decreto publicado. Houve alguma falha de comunicação?
Pois é, mas a gente já noticiava isso, todo mundo vinha aqui (no Urbanismo) fazer essa solicitação. Eu acho que várias coisas foram influenciando, quanto mais eles (organização) demoraram para se definir também foi ficando mais difícil para atender. Nesse período, temos solicitação de praças o tempo todo. Talvez falhou uma comunicação de eles (Gabinete) terem informado para entrar o com pedido pelo protocolo geral. Mas houve uma conversa, até onde eu sei eles protocolaram pedido formal, fiquei sabendo depois, para o chefe de Gabinete e para a Cultura. E houve uma conversa da Praça das Feiras, e eles disseram que não queriam. Depois, acho que acabou coincidindo algum outro evento e se limitando ao Ordovás.
Mas já no dia 24 de agosto eles solicitaram a Praça das Feiras ou a Plácido de Castro.
Sim, mas não sei qual a data eles estavam solicitando para o evento. Acabaram trocando algumas vezes, adiando, e isso só dificulta para combinar as datas e os locais.
A Marcha para Jesus passou pelo mesmo processo?
Sim, eles receberam a autorização quase na véspera, do trajeto até estacionamento do Centro Administrativo. Não houve distinção. Pelo que vi, apresentaram a documentação exigida e era um evento mais de circulação do que de concentração de pessoas. No ano passado, oferecemos o Centro Administrativo para a Parada e eles disseram que não têm condições de fazer ali, por causa do parque, que teria muitos problemas. Foi descartada a possibilidade.
O IMPASSE
:: A organização da Parada Livre solicitou em julho autorização para realizar o evento na Praça Dante Alighieri, como aconteceu em 15 das 18 edições até aqui. A primeira Parada contabilizada, de 2001, aconteceu em uma casa noturna privada. Em 2015, o evento foi levado à Estação Férrea e em 2016 à recém inaugurada Praça das Feiras, antes de retornar à praça no ano passado, já no governo Guerra. A comissão também solicitou algum tipo de apoio financeiro do município, o que já não havia sido repassado no ano anterior.
:: No dia 1° de agosto, o chefe de Gabinete da prefeitura encaminhou ofício que afirmava que o município estava impossibilitado de "atender as solicitações, na sua íntegra, tendo em vista as dificuldades enfrentadas pelo município desde que assumimos a administração em janeiro de 2017, onde estamos priorizando áreas como saúde, segurança, educação, assistência social e outros". Também informou que, sempre que possível, a administração auxilia na realização de "eventos autossustentáveis" e que disponibilizaria o espaço externo do Ordovás, sem fechamento da rua, empréstimo de gradis para delimitação de acesso ao caminhão de som, "apoio a mobilidade" pela Secretaria de Trânsito e colocação de latões para coleta de lixo e limpeza da via durante e após o evento pela Codeca, além de "ronda móvel" pela Secretaria de Segurança.
:: Em 24 de agosto, a comissão solicitou a reconsideração do pedido, já que as últimas paradas contaram com até 5 mil pessoas e o espaço, após verificação, havia se mostrado insuficiente para a montagen de estandes de comércio, palco e camarim de artistas, além de ser "de certa forma escondido", enquanto o evento tem como um dos objetivos promover a "visibilidade do público LGBT". A organização solicitou a Praça das Feiras, a Rua Plácido de Castro ou, novamente, a própria Marquês do Herval.
:: No dia 13 de setembro, o chefe de Gabinete Julio Cesar Freitas reafirmou que "o Centro de Cultura Dr. Henrique Ordovás Filho é um local amplamente conhecido no meio cultural" de Caxias. "No local além do funcionamento de unidades artísticas da Secretaria Municipal da Cultura, acontecem diversas ações e eventos. Sua área externa é ampla e tem sido muito utilizada para eventos. Desta forma, ratificamos a orientação para a utilização do local", reforçava o ofício.
:: Durante o mês, a comissão buscou alternativas inicialmente em imóveis do Estado, mas não foram encontradas opções. Em seguida, foi decidido pelo aluguel do estacionamento privado no bairro São Pelegrino.
:: Depois de solicitar autorização à Secretaria do Urbanismo, a organização recebeu em 1º de novembro o retorno com as exigências para continuar o pedido, entre as quais o Alvará de PPCI, a disponibilidade de banheiros químicos, ambulância e ART para as estruturas montadas. Os documentos foram enviados na terça.
PROGRAME-SE
XVIII Parada Livre de Caxias do Sul
:: Onde: Estacionamento São Cristovão, na Rua Os Dezoito do Forte 2.258, esquina com a Marechal Floriano, bairro São Pelegrino.
:: Quando: domingo, a partir das 14h.
:: Quanto: a entrada é gratuita, mas se sugere a doação de brinquedos ou doces que serão entregues para o projeto Elo do Bem, fará uma festa de Natal para crianças em situação de vulnerabilidade.
:: Informações: na página do evento no Facebook.
Para ajudar
Os organizadores da Parada Livre criaram uma vaquinha virtual para custear a estrutura solicitada pelo município para a realização do evento. É possível ajudar pelo site apoia.se/paradalivredecaxias. Até esta sexta, cerca de 40% dos R$ 3 mil necessários haviam sido arrecadados.