Salcedo Grass Lautert já vendeu pastel na rua, acompanhou a mulher, de porta em porta, oferecendo roupas para clientes e sentiu o gosto mais amargo que a vida pode oferecer, ao enterrar duas filhas. A vida difícil, de gente que acredita que pode ser feliz mesmo diante de tantos tropeços, não o impediu também de sentir o gostinho de realizar um sonho. Aos 75 anos, seu Lautert, que é morador de Farroupilha, foi o primeiro colocado no vestibular para Medicina Veterinária e, a partir de 5 de março, será um dos 8,5 mil acadêmicos do Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG).
É por não achar justo desistir da vida tão cedo e também por estar acompanhado de gente que acreditou no seu potencial _ como a esposa, Nadir, 68, _ que o aposentado poderá cursar uma faculdade sem desembolsar um tostão. Ele conquistou a única vaga para bolsista via ProUni (programa do Ministério da Educação que oferta bolsas em instituições privadas) no curso de Veterinária, já que, além de estar aposentado por invalidez devido a problemas na coluna, a renda mensal de pouco mais de R$ 1,5 mil não permitiria que bancasse uma faculdade. Não há fórmula mágica para obter a primeira colocação, garante ele. É preciso, porém, muito estudo e disciplina.
— Minha esposa um dia me disse: ó, tem uma coisa na internet, um cursinho de R$ 39,90 que tu pode assistir todos os dias. Eu me cadastrei porque esse é um valor que eu posso pagar e comecei — conta, entusiasmado em dar dicas sobre o cursinho acessível.
Daquele início de fevereiro em que ele descobriu as aulas virtuais até os dois fins de semana de novembro em que faria as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), foram períodos de muito esforço. Lautert e Nadir improvisaram uma salinha para estudos, passaram a desbravar melhor a internet e montaram uma jornada diária de aulas que ultrapassava as 10 horas.
— Eu assistia às aulas junto. Quase fiquei letrada também — brinca a idosa.
Física, química, matemática, português e outras disciplinas entraram na mira do aposentado. E se engana quem pensa que estudar era o único compromisso de Lautert. Afinal, ele tem quatro filhos homens, é avô de nove netos e tem até um bisneto. Toda a função dos estudos foi acompanhada de perto pela família, que ao saber da aprovação, fez até festa surpresa. Os netos têm agora o compromisso de superar as notas do avô _ algumas das mais altas do cursinho, gaba-se: ele atingiu 840 pontos na redação e cravou 640 em matemática.
Persistência é marca do aposentado
Além de acompanhar as aulas diariamente, de comprar livros e procurar aos assistir materiais complementares, Salcedo Lautert também dá uma lição sobre persistência. Isto porque esta não é a primeira vez que ele ingressa em uma universidade. Ele garante, porém, que agora ingressará para concluir o curso. A primeira experiência em um banco de faculdade foi há mais de 20 anos, quando cursou Direito em uma faculdade em Santo Ângelo, nas Missões, sua terra natal. Foi a morte da filha, por um aneurisma, aos 27 anos, porém, que colocou um ponto final naquele sonho. Reerguer-se de um sofrimento assim, sendo que já havia passado por essa experiência há outros 20 anos atrás, não foi tarefa fácil.
— Mas tudo tem seu tempo. A vida da gente é como uma semente, os sonhos são como uma semente, na verdade. Você cria, rega a plantinha e acompanha o crescimento. Quando menos se espera, você colhe. Demora, mas você colhe — orgulha-se Lautert.
O aposentado deixou Santo Ângelo com Nadir na década de 1980. Trabalhou no Hospital São Carlos, em Farroupilha, e em outras funções informais. Dos quatro filhos, um tem faculdade. Os demais estão bem posicionados e, conforme ele, "trabalhando bastante, graças a Deus". Dos netos e bisneto também se orgulha, e faz questão de não desestimular o sonho de nenhum deles:
_ Muita gente dizia: "o que ele quer estudar aos 75 anos! Vai tirar vaga de jovem. Fica em casa descansando". Mas não desanimei. Segui no meu objetivo e, se Deus permitir, um dia terei minha pet _ vislumbra.
A medicina veterinária é um sonho porque o idoso tem apreço especial aos bichos, de forma ainda mais carinhosa aos cachorros. É unir o útil ao agradável.
— Já estamos vendo de transporte. E pelo jeito, vou ter de comprar um celular pra usar a internet — prevê.
Manter rotina de trabalho ou estudo é saudável
Ainda são grandes a desinformação sobre a saúde do idoso e a falta de políticas públicas em execução voltadas ao desafio do envelhecimento populacional com qualidade. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a tendência é que, em sete anos, o Brasil seja o sexto país do mundo em número de idosos. Atitudes como a de Salcedo Lautert, que decidiu ingressar na faculdade aos 75 anos, são raras mas não inéditas na Serra. Na FSG, por exemplo, há até um aluno mais velho que Lautert, de 76 anos. E em Veranópolis, Celestino Costella formou-se aos 90 anos no curso de Pedagogia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). A formatura foi em 27 de agosto de 2016, e desde então, ele está ansioso pelo próximo desafio.
— Fiquei um pouco doente depois disso, e queria fazer uma pós-graduação. Mas gostaria que fosse em Veranópolis, só que não abriu mais turma. Estou esperando algum curso bacana por aqui — confidencia, aos 91 anos.
Os quatro pilares de envelhecimento ativo da OMS envolvem participação social, saúde, proteção social e a educação continuada. O vice-presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), Carlos Uehara, lembra que é importante que o idoso mantenha um propósito de vida, uma missão, mesmo com idade avançada. Isto serve como um importante antídoto para a depressão e, por consequência, para doenças que possam resultar em demência e outros males mentais. O profissional também lembra que manter rotina de trabalho na terceira idade pode ser benéfico, quando feito na medida certa.
— O idoso talvez não tenha capacidade laboral, física, mas a capacidade intelectual dele é muito boa. Ele pode ser contratado em meio turno, por exemplo. O ideal é que ele trabalhe em carga horária reduzida para que consiga fazer outras coisas importantes também para cuidar da sua saúde — aconselha o médico.