Velórios sem familiares, enterros sem cerimônia. A invisibilidade de pessoas em situação de rua também envolve suas mortes. A prova é que também não há categoria ou contagem específica nas estatísticas para esse público no cenário da violência urbana. Porém, em meio a números desencontrados e com a ajuda de servidores da assistência social, o Pioneiro contabilizou, desde janeiro de 2016, a marca expressiva de 32 assassinatos de homens e mulheres que viviam em calçadas, sob marquises ou moradias abandonadas ou usadas para o tráfico e consumo de drogas em Caxias do Sul.
Somente entre os dias 4 e 12 de janeiro deste ano, foram quatro mortes violentas de usuários dos serviços de acolhimento e abordagem da Fundação de Assistência Social (FAS), serviço criado para atender pessoas em vulnerabilidade e que estão nas ruas. O número equivale a um terço do total dos 12 homicídios registrados na cidade até ontem à tarde em 2018.
No ano passado, 12 pessoas em situação de rua ou desabrigo foram assassinadas em Caxias. Em 2016, foram 16. Num universo de 288 assassinatos registrados no mesmo período em toda a cidade, as 32 mortes indicam que a cada oito vítimas da violência em Caxias, uma se encontra na situação de rua. O índice chama ainda mais a atenção se considerada a população de rua, estimada atualmente em 400 pessoas pela FAS.
Muitos dos casos estão ligados a reincidências criminais: 22 das 32 vítimas possuíam passagem pela polícia. A maioria dos registros tambem está atrelada ao tráfico de drogas, seja por dívidas de consumo com traficantes ou mesmo por envolvimento com a comercialização de entorpecentes.
— O tráfico aumenta as chances de violência para esse público. Pelo fato de boa parte dessas pessoas ser dependente, muitas vezes elas precisam recorrer ao tráfico para obter o dinheiro para saciar o vício ou então estão alterados devido ao uso ou a falta de drogas — observa a criminóloga e professora de Direito Penal do Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), Angie Finkler.
De acordo com o Diagnóstico Socioterritorial divulgado pela FAS em 2017 - com levantamentos referentes a 2016 - 37% das pessoas em situação de rua passaram a viver nessa condição em decorrência do vício em álcool e drogas. O fator acaba sendo também o motivo de muitas desavenças e acertos de contas que levam a brigas com desfechos fatais.
"A vida na rua é perigosa"
Ao ser abordado pela reportagem na área central de Caxias do Sul, o morador de rua Alexandre Aurich admitiu ser usuário de crack, porém, logo acrescentou que a condição de dependência química jamais justificou que participasse de ações criminosas:
— Muitos dependem do roubo. Eu batalho e faço meu dinheiro pra fumar minha pedra e pra comer durante o dia. Nunca tive passagem pela polícia, mas a maioria que tá na rua tem porque precisa desse dinheiro devido a esse vício, e roubar é um dinheiro fácil e que rende mais. Se houvesse um melhor atendimento à população de rua, tenho certeza que os crimes diminuiriam — comenta.
Vivendo na rua há quase dois anos, quando rompeu os vínculos familiares devido ao vício em crack, Alexandre ressalta o perigo constante a que está submetido na convivência urbana.
— A vida na rua é perigosa. Se tu não tiver um jeito de viver na rua, não tem como. Tem que garantir, não ficar devendo nada pra ninguém, não arrumar intriga com ninguém. Já presenciei brigas por R$ 1 e por par de tênis — salienta.
Invisíveis, mas não para todos
O modo de vida adotado por muitos moradores de rua acaba por torná-los personagens invisíveis no convívio social. Ainda assim, alguns ganham simpatia de comunidades onde se instalam ou buscam exercer atividade para fonte de renda. Em julho do ano passado, a morte de Veni Bras de Oliveira comoveu moradores e pessoas que trabalham perto da Casa de Pedra, no bairro Santa Catarina.
O morador de rua ganhou notoriedade na região pela gentileza e a boa relação que cultivou com a comunidade. Veni tinha o costume de ajudar motoristas que estacionavam na Rua Professor Marcos Martini.
Caso semelhante vivenciaram moradores do bairro Rio Branco, nas imediações da sede da Receita Federal. Acostumados com a presença de alojamentos de pessoas em situação de rua até por volta de um ano atrás em um matagal da região, um indivíduo em específico, no entanto, chamava a atenção por ser discreto e cordial com todos. Era Luiz Ivaldo Simioni, que no dia 8 de dezembro de 2016 foi encontrado morto em um contêiner de lixo. Caso posteriormente confirmado como homicídio.
— Ele dava bom-dia pra todo mundo e conversávamos. Meu marido tinha uma relação mais próxima porque ajudava ele a ir na farmácia comprar curativos porque ele se machucava muito, pois tinha problemas com álcool e caía frequentemente — comenta a moradora do Rio Branco, Eliana Konrad.
Apesar de afirmar ter tido uma boa relação com Simioni, ela comenta que após ter descoberto a morte acabou se sentindo frustrada por não ter dado mais atenção ao morador de rua:
— É uma pena que muitas vezes não temos esse costume conversar com moradores de rua. Às vezes é só o que eles precisam. Mas, estamos tão envolvidos com a nossa rotina que deixamos de ajudar essas pessoas que muitas vezes são esforçadas. Poderíamos fazer mais — complementa.