Para alguns moradores do loteamento Altos de Galópolis, em Caxias do Sul, 2017 acabou com uma boa notícia: uma liminar garantiu a permanência de sete famílias no local até que o destino do loteamento, que é irregular, seja definido pela Justiça. Eles protocolaram uma ação contra quem lhes vendeu os terrenos, pedindo a quebra de contrato e indenizações pelas melhorias realizadas e por danos morais. O governo do Estado, proprietário da área, também é réu na ação.
O loteamento surgiu há mais de 15 anos, quando o Estado transferiu alguns agricultores para o local por meio de um programa de reassentamento (veja mais no quadro). As terras, porém, nunca foram oficialmente transferidas aos trabalhadores rurais. Alguns deles revenderam os terrenos, que acabaram loteados. Hoje, a área abriga entre 400 e 500 famílias. A expansão desordenada motivou a abertura de uma ação civil pública, em 2015, por parte do Ministério Público (MP).
A promotoria quer que o Estado retome a área e que os moradores sejam realocados, já que o loteamento fica em área rural, que não pode ser regularizada. Além do Piratini, a ação também responsabiliza os loteadores pela venda ilegal das parcelas.
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Desde o início de 2016, uma liminar suspende o desenvolvimento do loteamento, proibindo a execução de novas construções e a venda de terrenos. Foi essa decisão que motivou o industriário Everton Luiz de Oliveira, 30 anos, a protocolar a ação contra os loteadores. Ele comprou um terreno no Altos de Galópolis há quatro anos, por R$ 35 mil, com a promessa de que teria a propriedade da área.
Ele (o loteador) falava que era só terminar de pagar e ir na prefeitura pegar a escritura. A gente morava na cidade, pagava aluguel, aí apareceu essa oportunidade. Resolvemos encarar, mas depois veio a bomba: a liminar mandando parar tudo lembra.
Já instalado com a mulher, ele teve de interromper a construção da residência.
— Tem muita coisa para fazer ainda, não tem garagem, meu banheiro é improvisado — enumera.
Falta infraestrutura básica
Como o loteamento não é regular, a prefeitura não pode oferecer os serviços básicos. O terreno de Oliveira só pode ser acessado após a descida uma estrada, sem calçamento. A inclinação e as condições da via fazem com que seja difícil até chegar de carro ao local.
— Faz muita falta (infraestrutura). A luz também, são várias casas com o mesmo fio. Já queimaram vários aparelhos — exemplifica.
Quando a liminar o proibiu de terminar a casa, Oliveira decidiu parar de pagar o terreno.
— Estava terminando, mas não dá para seguir pagando uma coisa que nem nossa vai ser — justifica.
O Pioneiro não conseguiu localizar os loteadores que são réus nas ações judiciais dos moradores e do MP.
Regularização é incógnita
Enquanto algumas famílias ouvidas pelo Pioneiro não acreditam que a área possa ser regularizada, o presidente da associação de moradores, Eugenio Carlos Petry, é mais otimista.
— Estamos no caminho para ter a regularização. A ação do MP é para estancar a entrada de mais pessoas até que isso aconteça — defende.
Petry, que comprou um terreno na área em 2011, também teve de paralisar a construção, mas diz que tinha conhecimento da situação no momento da negociação:
— Todo mundo ali sabia como a área foi vendida, que era uma área do Estado a ser regularizada. Muitos compraram e revenderam, foram repassando por lucro. Isso gerou o problema, (o loteamento) estava crescendo muito rapidamente.
Conforme Petry, a solução para a situação passa pela transferência da área estadual aos loteadores. Estes, então, repassariam a escritura dos terrenos a quem comprou.
— A promessa era de que fosse feito um grupo de trabalho entre todas as partes, no fim do ano. Esse grupo não saiu. Agora, aguardamos para ver se o loteamento vai passar a ser área urbana. Aí, fica mais fácil propor um acordo — diz.
O promotor de Justiça Adrio Gelatti garante que o loteamento não é regularizável enquanto permanecer como área rural.
— A ação exige que o Estado retome as áreas que foram assentadas. Os que fizeram o loteamento perdem esses terrenos. Inicialmente, pede-se a retirada e realocação das famílias que estão lá. Agora, a questão de ser viável ou não é outra situação. Na verdade, a ação provocou uma discussão sobre a necessidade ou não de transformar aquilo numa zona urbana, em razão da situação em que se está — explica Gelatti.
Caso o loteamento passasse a integrar a zona urbana, porém, teria de manter áreas de preservação ambiental e contar com infraestrutura pública.
— Na verdade, aquela área ali não é boa para a ocupação humana, não tem abastecimento de água e há áreas onde não é possível instalar poços — define Gelatti.
Estado propõe repassar área à prefeitura
É difícil vislumbrar a retirada de todas as famílias — são mais de 400, segundo o Ministério Público, e mais de 500, conforme a associação de moradores. O loteamento parece consolidado, mas o caminho para a regularização também não é simples.
Conforme a Procuradoria-Geral do Estado (PGE), a regularização somente é possível para os agricultores originalmente beneficiários do assentamento. A PGE revela que, dado o estado atual da área, entrou em contato com a prefeitura de Caxias para firmar um acordo prevendo a doação das terras ao município. Isso ocorreria mediante o compromisso de transformar o loteamento em área urbana e empreender a regularização, na "tentativa de buscar uma solução menos gravosa a todos".
O procurador-geral do município, Felipe Dal Piaz, afirma que não há a possibilidade de regularização da área enquanto tramitar a ação civil pública do MP.
— Por ocasião da revisão do plano diretor, o município já propôs a criação de um zoneamento especial e específico para a área do Altos de Galópolis. No entanto, a possibilidade efetiva de regularização depende de definições prévias sobre a titularidade da área. O município não dispõe de legitimidade para atuar ou interferir nisso — explica.
Para o procurador, o acordo proposto pelo Estado também não é possível, já que empurraria o problema para a prefeitura.
— O Estado se omitiu por décadas na regularização da área e se manteve silente e inerte em relação ao ocorrido na propriedade. A proposta apresentada informalmente transfere o ônus da omissão ao município, sem propor nenhuma contrapartida ou assumir responsabilidade. Portanto, da forma como apresentado, o acordo é inviável — determina.
Mesmo com liminar, irregularidades continuam
Mesmo com a proibição do loteamento se desenvolver, em vigor há dois anos, moradores relatam que a venda ilegal de terrenos continua. O Pioneiro esteve no Altos de Galópolis na tarde da última sexta-feira e flagrou uma residência à venda.
De acordo com o promotor Adrio Gelatti, o MP tenta impedir o comércio e parcelamento de terrenos pelos réus da ação civil pública, mas tentativas de burlar a decisão acontecem:
— Eles (os réus) tentam vender através de terceiros. A gente viu vários casos em que os réus estavam criando situações para tentar a consolidação de áreas ainda não vendidas. Pedimos até a demolição de algumas casas, galpões, onde não vivia ninguém.
A Procuradoria-Geral do Município (PGM) diz que, mesmo não sendo parte na ação, fiscaliza o loteamento e alerta o MP e a Justiça caso os servidores constatem irregularidades. Com a área embargada, não é possível realizar nenhuma nova melhoria ou construção. Porém, conforme o presidente da associação de moradores, a liminar freou a venda de terrenos, mas muitos moradores continuaram suas obras.
— Não existe uma fiscalização rígida. Se alguém estava na metade da construção, acabou terminando e vindo morar. A venda de lotes diminuiu, foi mais estancada. Mas quem já tinha terreno, nos primeiros seis meses parou, mas acabou terminando a casa — conta Eugenio Carlos Petry.[
"Fomentou-se uma sensação de regularidade que não existe" diz defesa dos moradores
Quem representa os moradores que entraram com a ação contra os loteadores e o Estado é o advogado Rodrigo Balen. Ele diz que os interesses dos residentes não estão contemplados na ação civil pública do Ministério Público. Por isso, pede a quebra de contrato de compra dos terrenos e indenização por parte dos loteadores e do Estado, tendo como garantia a terra e os bens dos loteadores, já bloqueados na ação do MP, que totalizariam R$ 12 milhões.
— O intuito é que, depois, os próprios moradores possam tentar um acordo com o governo do Estado — explica.
O plano, porém, foi parcialmente frustrado pelo prefeito Daniel Guerra (PRB), conforme o advogado. Em setembro, Guerra esteve no Altos de Galópolis para anunciar o alargamento de uma estrada. Na ocasião, o município informou, em nota, que se tratava de uma via oficial, pertencente ao bairro de Galópolis. Para Balen, porém, a presença do prefeito e de outros representantes do Executivo na associação de moradores do loteamento passou uma sensação de que a área seria regularizada e "esvaziou" a ação.
— Íamos entrar com ações de cerca de 50 moradores, 28 na primeira leva. Mas o prefeito foi lá, tirou fotos inclusive com réus da ação (do MP). As ações que caíram para cinco. Por mais que seja uma obra regular, ele fomentou a sensação de que é possível regularizar, o que não existe, já que a prefeitura nem tem legitimidade para isso — reclama.
Serviços de necessidade pública
Após a visita, um dos loteadores teria removido placas que indicavam que a área estava embargada, colocadas pelo MP. Questionada, a Procuradoria-Geral do Município repetiu o que divulgou em nota, na época, afirmando que a obra "não representa, de forma alguma, anuência ou auxílio em relação à consolidação e/ou regularização de áreas de parcelamento ilegal localizadas na região". Também diz que, na ocasião, o prefeito negou "pedido específico dos representantes da comunidade denominada Altos de Galópolis, de manutenção das vias internas e particulares do referido loteamento ilegal".
Hoje, o loteamento recebe abastecimento de água, em acordo com o MP, manutenção das vias oficiais e coleta de lixo. O promotor Adrio Gelatti afirma que autoriza serviços pontuais de necessidade pública, mas acredita que a presença do município incentive os loteadores a prosseguir com irregularidades.
— Tudo passa por análise. Mas cada vez que a prefeitura vai lá e faz qualquer tipo de manutenção, os loteadores usam como desculpa e começa a vender. Cria-se um sentimento de que pode, porque estão fazendo obras. Então, a gente tem buscado evitar esse tipo de situação e autoriza algumas manutenções pontuais, onde há necessidade — explica Gelatti.
ENTENDA O CASO
:: Em 2001, agricultores de Ibiraiaras foram transferidos pelo Estado para a área conhecida hoje como Altos de Galópolis. Eles receberam as terras pelo programa Assentamento Alto da Serra, em razão da construção da Usina Hidrelétrica Dona Francisca.
:: O Estado, porém, não chegou a repassar a escritura da área aos produtores rurais.
:: Alguns agricultores venderam as terras para outras pessoas. Outras partes do loteamento foram invadidas. A áreas acabaram parceladas e ocupadas por mais de 400 famílias.
:: A prefeitura de Caxias nunca regularizou a área, mas, com a justificativa de que age por responsabilidade civil, abriu espaços para ruas e fornece água.
:: Em 2015, uma ação ajuizada pelo Ministério Público exigiu a demolição das construções do loteamento, com retirada de todos os moradores, por se tratar de área rural em zona de preservação ambiental. Os réus são os loteadores (alguns agricultores originais e outro loteador que adquiriu parte da área posteriormente) e o governo do Estado.
:: Em janeiro de 2016, uma liminar a favor do MP foi expedida pela Justiça, proibindo a compra e venda de terrenos e suspendendo novas construções e melhorias na área.
:: Em 2017, moradores protocolaram nova ação na Justiça contra os loteadores e o Estado, pedindo a quebra de contrato de compra dos terrenos e indenização por melhorias realizadas e por danos morais.
:: Em dezembro de 2017, a Justiça concedeu liminar aos moradores, que garante a permanência deles nas residências até o julgamento das duas ações.