Entre as diversas iguarias procuradas pelos moradores da Serra nos dias mais frios, uma é bastante peculiar: o bucho, também conhecido por tripada, mondongo, dobradinha, buchada, entre outros. O prato é um tanto polêmico e divide opiniões. Muitos admitem comer, porém a afirmação costuma vir seguida de uma condição: o alimento precisa estar bem temperado ou ser feito por alguém "de confiança". Outros não gostam por não suportar o cheiro. Outros tantos nunca comeram, sentem ojeriza até ao mencionar a palavra. Há ainda os que amam, mas o sentimento sempre vem acompanhado de um "não me julguem".
Para você, onde é encontrada a melhor tripada da região?
Nos últimos dias, tão comum quanto deslocar-se ao Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, em Farroupilha, é comer a famosa "tripada de Caravaggio", servida no Restaurante Família Brunetta, ao lado da igreja. Há 57 anos, o alimento é preparado semanalmente, conquistando paladares de diversas cidades do Estado e do país. Por mês, são adquiridos de frigoríficos cerca de 1,5 mil quilos de bucho.
Segundo Vasco João Brunetta, um dos proprietários, a tradição começou em 1959, quando os pais adquiriram o restaurante. Na época, a tripada era servida às 9h, após a missa. Atualmente, o bucho vai à mesa todos os dias em que são servidas refeições no Brunetta. O cardápio ainda inclui sopa de agnolini, pien, macarrão, entre outros pratos característicos da gastronomia local.
– O italiano e seus descendentes sempre gostaram, ela foi introduzida aos poucos na culinária típica da imigração – confirma Vasco.
Atração em Otávio Rocha
Não muito longe dali, em Otávio Rocha, distrito de Flores da Cunha, o prato também é bastante disputado. E é com muito zelo que, há 17 anos, a dona de casa Veroni Olimpia Besutti Catafesta, 64 anos, se dedica ao preparo do bucho, servido todos os sábados no salão da comunidade.
– Aqui não tem feriado, nem férias, todo sábado eu tenho que ir fazer bucho –afirma.
Os trabalhos, porém, começam ainda na quarta-feira, quando a senhora vai até o salão para cortar e ferver as tiras. Por semana, são cozidos cerca de 35 quilos do alimento. Segundo ela, muitas pessoas vêm de outros bairros de Flores da Cunha e até de Caxias do Sul para comer.
– Quando comecei, fui observando as outras cozinheiras da comunidade e aprendendo – completa.
Apesar das peculiaridades de cada uma, uma etapa do preparo não muda: é preciso ferver muito. Depois, na hora de temperar, cada cozinheira utiliza os condimentos de sua preferência, para dar aquele toque especial.No restaurante da família Brunetta, a esposa e a cunhada de seu Vasco são as responsáveis por fazer o bucho – tarefa antes exercida pela mãe dele, Hilda Pasa Brunetta, falecida em 2014.
– Com o passar dos anos fomos aprimorando o produto, mas o Brunetta é conhecido por um tempero picante, mais forte – revela Vasco.
Assim como o ritual religioso, a tripada de Caravaggio perpassa gerações: avós traziam seus filhos, filhos trazem seus netos, etc, o que contribui para o prato ganhar cada vez mais adeptos. Além de moradores da Serra, a casa recebe clientes de outras cidades do Estado, principalmente da região metropolitana. Segundo Vasco, muitos visitantes que comem a tripada no restaurante acabam voltando para comprar o alimento congelado.
– Outro dia um senhor de São Paulo jantou aqui e levou 15 quilos para lá – completa Vasco.
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Animal por inteiro
Embora muito conhecido e tradicional por aqui, o bucho é um prato antigo e comum a todos os povos. Conforme a mestre em Turismo, com pesquisa em História e Cultura da Alimentação, Rosana Peccini, comer bucho é normal nas regiões em que há criação de gado. Desde a pré-história, o homem tinha de aproveitar o animal por inteiro, por isso nem o estômago do ruminante ficava de fora.
– A área urbana perde os costumes, mas na colônia, quando um animal é morto, cada parte do corpo serve para um prato – afirma.
A denominação do prato muda de região para região: no nordeste, o comum é a buchada de bode, por aqui, é normal chamar de buchada e tripada, já em São Paulo o prato é conhecido por dobradinha. Ainda de acordo com Rosana, o alimento não é exclusivo do Brasil, também pode ser encontrado em países como Argentina, Itália e França.
– O hábito de comer bucho passou de geração a geração e acabou virando uma tradição – pontua.
'Isso aqui é a minha paixão'
O compromisso de ter de preparar bucho para cerca de 120 pessoas todos os sábados deixa dona Veroni Olimpia Besutti Catafesta ainda mais disposta. Além disso, é ela quem faz os pães coloniais servidos juntamente com o bucho e os bifes na chapa. Quando se trata de cozinhar, ela gosta de fazer tudo.
– Isso aqui (preparar o bucho) é a minha paixão, é tudo que eu sempre quis fazer – revela.
Veroni ainda conta com o apoio do marido, Antônio Catafesta, que arruma as mesas do salão enquanto ela se dedica ao preparo da comida. Os temperos que ela utiliza são provenientes da sua própria horta, entre eles, orégano e cebolinha verde, salsa e manjerona. Para ela, chegar ao salão às 13h e sair às 23h é trabalhoso, porém gratificante.
– É um orgulho pra mim quando as pessoas terminam de jantar e vêm na cozinha me agradecer – diz.
A atividade exercida por ela une toda a família. Quando sobra bucho, dona Veroni sempre acaba levando um pouco para casa. Os filhos e netos também são apreciadores da iguaria.
– Teve que um dia que, depois de comer, meu neto de sete anos falou que queria bucho para levar pra casa – ri.
Gosto sem restrições
Desde criança, Diego Tonet, 29 anos, morador de Flores da Cunha, é habituado a comer bucho, ainda mais se tiver pão e arroz para acompanhar. Quase uma vez por mês, a mãe, Beatris Novello Tonet, compra e faz em casa para a família. Apesar de já ter saboreado o prato em restaurantes, ele não esconde a preferência:
– Gosto mais do da minha mãe.
Porém, se convidado para uma buchada, o jovem não nega. O polêmico alimento, inclusive, já rendeu histórias divertidas.
– Fui coordenador da cozinha durante um cenáculo e brinquei com meus amigos que não gostam que iria ter bucho para comer – ri o jovem, que faz coro a centenas de outros que seguem uma tradição herdada de pais, avós e pessoas mais velhas, sejam elas naturais da Serra ou não.
O aposentado Alcino Ferreira Nunes, 68 anos, natural de Marcelino Ramos, na região do Alto Uruguai, por exemplo, aprendeu a gostar de bucho quando veio morar em Caxias, há mais de 40 anos.
– Sempre que dá, eu compro para a minha mulher fazer – diz Nunes.
Para ele, o bucho só é bom se estiver bem temperado. Como gosta bastante da iguaria, não perde a oportunidade de participar de uma buchada.
– Depois que vim morar aqui, quando tem na nossa comunidade, eu sempre vou – conta.
Grife Brunetta
A tripada do Restaurante Família Brunetta é marca registrada há cerca de oito anos. O sucesso do prato fez com que os proprietários começassem a distribuí-lo em mercados e fruteiras de cidades como Farroupilha, Caxias do Sul, Bento Gonçalves e Garibaldi.
Além do bucho, vários produtos servidos na casa também são comercializados, como massa e queijo para fritar. Segundo Vasco João Brunetta, a tripada vende bem sempre, mesmo sendo um alimento para os dias mais frios.
– No inverno é mais propício para comer, acompanhado de um vinho – recomenda Vasco.
"Adoro comer uma buchada"
Uma postagem inusitada em minha página no Facebook, quando anunciei ter ido a uma buchada na comunidade de São Gotardo, em Flores da Cunha, foi o mote para essa reportagem, seja pelo lado positivo ou negativo – várias amigos comentaram que adoram e sentem falta de comer bucho, outros até criticaram minha preferência.
Nascida e criada lá, desde criança fui acostumada a comer bucho. O meu gosto pelo prato, inclusive, era motivo de chacota entre os colegas de escola. Sempre que tenho a oportunidade, adoro comer uma buchada. Lembro que, aos sábados de manhã, meu nono Gabriel costumava limpar o bucho no tanque de roupa, para a nona Edit prepará-lo depois. Ao meio-dia, toda a família se reunia na casa deles para degustá-lo. Atualmente, devido à demora e à dificuldade do preparo, meus avós costumam comprar o bucho pronto.
No último dia 7 de maio, eu, meu pai e meu nono comemos um delicioso bucho servido no salão da comunidade, logo após a missa. O cheiro e as especulações sobre o modo de preparo nunca me incomodaram. Pelo contrário, sou daquelas pessoas que gosta de visitar a cozinha, saber quais temperos foram utilizados e ouvir o que as pessoas têm a dizer sobre a iguaria. (Bruna Marini)