O passante mais distraído talvez nem tenha percebido, mas o mais emblemático prédio do trecho da Av. Júlio de Castilhos defronte à Praça Dante Alighieri está de cara nova. Uma cara que, embora tenha sofrido com as marcas e alterações desordenadas das últimas décadas, aproxima-se de seu período áureo, verificado entre os anos 1930 e 1950.
Em fase final de obras, o prédio do antigo Cine Central, integrante do patrimônio do Recreio da Juventude, deve estar totalmente concluído até o início de junho. É quando uma filial das Lojas Americanas, responsável pelas reformas, ocupará as instalações.
Antigo Cine Central: uma reforma a caminho
Toda a reforma e restauro do Cine Central teve o acompanhamento da Divisão de Proteção do Patrimônio Cultural de Caxias. Coube ao órgão dar as diretrizes e supervisionar os trabalhos, visto que o prédio, datado do final dos anos 1920, é tombado pelo Patrimônio Histórico do município - segundo o contrato, as Lojas Americanas só poderiam ocupar o local após a conclusão das obras.
As interferências, englobando os conceitos de reforma e restauro, buscaram sanar problemas de infiltrações de água e vazamentos no telhado e recuperação de pisos, forros e do que restou do desenho interno, bastante modificado após a passagem das Lojas Manlec pelo imóvel. Já a restauração dialogou principalmente com a riqueza histórica da fachada, seguindo um detalhado estudo desenvolvido pelo arquiteto Celestino Rossi.
O Cine Central e as esculturas de Estácio Zambelli
Exemplar único na cidade
Conforme a coordenadora da Divisão de Proteção do Patrimônio Cultural de Caxias, Liliana Henrichs, a monumentalidade e a volumetria do prédio, com suas estátuas esculpidas no atelier do escultor Estácio Zambelli, fazem do Central um exemplar único em Caxias.
– Não era uma edificação civil normal, era uma moderna casa de espetáculos e diversão, com teatro, cinema e diversas outras atrações. É, com certeza, o prédio mais representativo daquele trecho – completa Liliana.
Prédio surgiu em 1928
Erguido em 1928, o prédio trazia, originalmente, uma enorme marquise de ferro em estilo art nouveau. Seguiam essa mesma escola as três lâmpadas que iluminavam a fachada, colocadas estrategicamente no telhado – para destacar as laterais e o frontão, onde as letras da identificação Cine Theatro Central formavam uma espécie de triângulo.
Apesar do desaparecimento de todos esses detalhes da fachada ainda nos anos 1950, é o interior que mais sofreu com algumas "reformas". Em meados dos anos 1970, o espaço do primeiro piso chegou a ser transformado em uma quadra de esportes e, nos 1980, abrigou o Departamento de Judô.
A recuperação do Cine Central também dá sequência à reforma da sede social do RJ, na Rua Pinheiro Machado. Em 2015, fachada e interior receberam intervenções para que o prédio também se aproximasse do original, inaugurado em 1955. Já a construção menor, datada de 1925, será a última desse processo de recuperação do patrimônio arquitetônico da agremiação.
- Faz parte do nosso plano instalar ali um café, que operará durante o dia (usando o jardim da esquina para as mesas externas) e também atenderá a sede, que se transformou em um centro cultural - revela o vice-presidente de Patrimônio do clube, o arquiteto Fernando Machado.
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Um baile de gala no Recreio da Juventude em 1955
As portas
As antigas portas de madeira, com vidro e detalhes em metal, guardadas pelo clube, já foram restauradas e recolocadas. Porém, a grade de enrolar continuará a existir, por razões de segurança.
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'Não basta só reformarmos os prédios'
Vice-presidente de Patrimônio do Recreio da Juventude, o arquiteto Fernando Machado é um entusiasta do processo de recuperação dos prédios históricos do Centro. Porém, segundo ele, esse processo carece ainda de políticas consistentes para que ambiente construído e identidade dialoguem melhor.
No caso do Cine Central, a obra foi totalmente custeada pelas Lojas Americanas, atual locatária do espaço, em consonância com as determinações exigidas pela Divisão de Proteção do Patrimônio Cultural. Para Machado, trata-se de uma rara e inédita parceria, em que todos saíram ganhando, principalmente a cidade.
Na entrevista a seguir, o arquiteto detalha alguns detalhes de todo esse processo.
Pioneiro: Pode-se dizer que esta é a primeira restauração de verdade pelo qual que a fachada do Central passou, desde a inauguração do prédio, em 1928?
Fernando Machado: Acredito que, como restauro propriamente dito, tentando deixar o prédio muito próximo de como ele foi edificado originalmente, é a primeira vez. As alterações dos anos 1950, no intuito de modernizar, descaracterizaram a construção original. Foi inserida uma marquise de concreto armado com balaustres, que eliminou a marquise de vidro e metal muito bonita e achatou um pouco as portas anteriores, que eram mais elegantes. Hoje, seria muito custoso e arriscado remover a marquise de concreto para retornar ao status quo anterior.
Que estudos e trabalhos foram feitos para se aproximar do mais original possível?
Machado: Levamos exatos três meses para todos os trabalhos de restauro, que não só se circunscreveram à fachada, mas também a recuperação estrutural do telhado, que apresentava risco de ruína, forros e pisos de madeira (que foram consertados e imunizados), fachadas laterais e fundos. No processo de execução são feitas várias prospecções de camadas de pintura, tipo uma arqueologia do que se foi acumulando pelo tempo. Optei por deixar as esquadrias na madeira natural, deixando, inclusive, aparecerem as marcas do tempo, somente protegendo-as com verniz. Quanto às estátuas, descobrimos que foram feitas em duas camadas, uma de uma argamassa porosa, com a forma básica das esculturas. Já o acabamento foi feito de cimento, polido à mão, com ferramentas talvez de escultores (não pedreiros), o que leva a crer que foi feito in loco. Lembro que cimento, na época, era um material de “ponta”, sendo importado da Europa, já que as primeiras fábricas no Brasil instalaram-se por volta de 1890, na região de São Paulo.
Durante esse processo, veio à tona alguma curiosidade sobre a história da fachada?
Machado: Não, é uma pena. Muito pouco dessa obra foi registrado, mas deve ter sido um acontecimento na época um prédio com tal nível de sofisticação. Trata-se de um prédio cujo projeto original é muito bem proporcionado e elegante. Lembro que a disposição das estátuas é claramente inspirada na composição da tumba de Lorenzo de Medici (obra de Michelangelo), o que demonstra o alcance das expectativas de quem o construiu.
Esse tipo de intervenção, logicamente, ajuda a chamar a atenção para a preservação. Pode-se dizer que o Centro, principalmente o entorno da Praça, está ressurgindo?
Machado: Eu penso que sim, porém há muita coisa a ser feita ainda. Não basta reformarmos os prédios. Isso ajuda muito, mas ainda faltam políticas consistentes que encarem o nosso ambiente construído como parte de nossa identidade. Todo mundo adora Paris, Londres e Roma, mas não se dá conta que são cidades totalmente singulares, primeiramente pelas construções, que são reflexo da cultura local. Ninguém confunde Paris com Roma, olhando pelas fotos. Já aqui, como não se preserva, ou se modifica aceleradamente, sem critério, não se valoriza o que já existe, que sempre pode ser reciclado, bastando inteligência. Por isso nossas cidades acabam ficando feias. Uma coisa deve ser louvada: a lei que limpa a poluição visual. A esperar pela lei que obrigue a RGE limpar suas gambiarras e fazer rede subterrânea. Isto seria o céu.
Pioneiro: Mesmo com o "desmanche" verificado nos últimos anos, como você avalia Caxias em relação a outras cidades brasileiras de mesmo porte e idade?
Machado: Não tenho informações suficientes para comparar cidades de mesmo porte. Porém, o caso de Porto Alegre, bem próxima, é lamentável também. Vejo uma conjunção infeliz de vários fatores, mas o principal é o descaso em relação à história e o despreparo dos atores responsáveis pela renovação urbana. Entram aí proprietários, incorporadoras, arquitetos e poder público. Mas também não dá para dizer que aqui é o fim. Mesmo na Europa, acompanho seguidamente casos em que se destrói patrimônios fantásticos em nome do novo. Por outro lado, cada vez mais cresce a percepção que é muito burro não aproveitar estruturas e reciclá-las. É até uma questão de sustentabilidade E também dá retorno econômico respeitar uma comunidade. Talvez por aí a coisa comece a andar.