"Crescer sem ter a quem se espelhar, sabendo que é alguma coisa diferente, mas ainda não sabe o quê. E tu fica com aquele pensamento de 'vou crescer sozinho, porque eu sinto que a minha questão familiar é diferente. Então, vou crescer sozinho e morar sozinho, viver sozinho'. Tu vai crescendo com esse pensamento", relembra Cássio Motta, fotógrafo de Caxias do Sul que há seis anos divide o lar com o namorado Wéllington Damin.
A realidade de morar junto com o cônjuge, no entanto, é nova. De acordo com o Censo de 2022, Caxias do Sul tem 1.110 domicílios com responsável e cônjuge de mesmo sexo. Um aumento de 747,33% em relação aos dados de 2010, quando eram 131 lares. Dado que se repete também em municípios próximos, como Flores da Cunha (+750%), Farroupilha (+1.342,86%) e Bento Gonçalves (+716%).
— Não era algo que fosse muito debatido. Eu acho que hoje em dia é mais amplo. E, talvez, por ser um pouco mais falado e debatido sobre esses assuntos, torna o caminho mais fácil também — analisa Motta.
Os dados de Caxias do Sul e região refletem uma crescente do país. No Brasil, houve um aumento significativo de casais homoafetivos morando juntos nos últimos 12 anos. É o que indicam números do Censo Demográfico 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O aumento do índice coincide, também, com o reconhecimento dos casamentos homoafetivos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2011.
De acordo com Cristiano Sobroza Monteiro, doutorando em Antropologia Social pela Unicamp-SP e professor de Antropologia da Universidade de Caxias do Sul (UCS), o aumento de 747,33% no número de domicílios com responsáveis e cônjuges do mesmo sexo em Caxias do Sul e cidades próximas destaca uma transformação social no Brasil contemporâneo.
— Esse dado reflete o avanço das discussões sobre diversidade, direitos e inclusão na sociedade brasileira, bem como a maior disposição de casais homoafetivos para se afirmarem publicamente. Do ponto de vista da Antropologia, essa mudança pode ser interpretada como um reflexo das lutas por direitos sociais e do reconhecimento de novas formas de organização familiar, alinhando-se às dinâmicas de um mundo globalizado e plural — analisa.
Além do reconhecimento enquanto casal e organização familiar, outro ponto importante destacado por Monteiro é que os valores da sociedade na região da Serra também acompanham o movimento observado pelos dados do Censo.
— Esse aumento mostra que, mesmo em localidades associadas historicamente a valores tradicionais, as cidades estão acompanhando tendências globais de maior aceitação da diversidade. Isso evidencia um Brasil em diálogo entre as forças da modernização e certos valores culturalmente estabelecidos. Nesse contexto, a maior aceitação e reconhecimento de diferentes formas de amor e organização familiar, mesmo em cidades tradicionalmente conservadoras, ilustram como as sociedades locais estão se transformando, reinventando as demandas do presente com a complexidade de suas identidades históricas — observa Monteiro.
São essas mudanças que incentivam casais como Cássio Motta e Wéllington Damin a tomar a iniciativa de viver juntos.
— Antes, a gente não enxergava esta ambição de ter nossa própria família. Não era algo que se pensava ou se debatia. Até tinha vontade, mas não sabia se ia se concretizar. Cresce com uma dúvida se vai alcançar isso. Tanto que quando a gente se mudou aqui pro prédio, a primeira coisa que a gente pensou foi se algum vizinho ia reclamar — reflete Damin.
"Todo mundo está se sentindo mais seguro pra ter essa liberdade"
Para o casal Renan Luz e Kleiton Cicherelo, a decisão e o processo de morar juntos foram tranquilos. No entanto, os dois observam que a realidade e o pensamento das pessoas vêm mudando sobre o assunto.
— Eu enxergo de uma maneira muito positiva. Acredito que essa visão que estamos tendo agora é porque todo mundo está se sentindo mais seguro pra ter esta liberdade. Seguro pra estar junto com a pessoa que tu ama, num local só de vocês dois — afirma Luz.
O casal analisa que no passado, quando casais homoafetivos moravam juntos, havia julgamento. Hoje, no entanto, enxergam que a sociedade, principalmente os mais jovens, trata a questão com naturalidade.
— Até tinha antes, mas acho que realmente as pessoas não falavam. Talvez não se assumissem por questão de preconceito. Eu percebo, pelo menos na galera mais jovem, que eles são muito mais abertos e é muito mais naturalizada essa questão para eles. Eles entendem que não tem porquê eles levarem aquilo como um peso — analisa Cicherelo.
Os dois também atribuem a mudança de pensamento ao acesso à informação, facilitado pela internet, por exemplo.
— Na nossa época, nos anos 2000 e final dos anos 1990, não era assim. Não tinha tanto essa informação. E nossos pais também não tinham esse entendimento. Eu acho que o progresso vai, aos poucos, mudando o pensamento — complementa Cicherelo.