Parece episódio de Black Mirror, a série inglesa disponível na Netflix e que apresenta tecnologias possíveis para um futuro próximo. Uma delas, a que cria clones virtuais, já está disponível e foi desenvolvida por um caxiense.
Com o auxílio de diferentes tipos de inteligências artificiais, o empresário Rodrigo Martiniak, 40 anos, criou o que chama de "segundo cérebro" e hoje o utiliza, inicialmente, para organizar sua agenda.
A ideia surgiu quando Martiniak descobriu uma doença autoimune que ataca seu sistema imunológico. Preocupado com o futuro, começou, há dois anos, a alimentar uma inteligência artificial (IA) própria com suas informações pessoais. Na versão digital, segundo ele, estão contidas as próprias memórias, gostos e pensamentos.
Já é possível interagir com o protótipo que tem o rosto e a voz de Martiniak. Tudo isso para deixar, segundo ele, um legado para o filho e uma forma de interagir com o pai, ainda que virtualmente.
— Você só morre quando é esquecido. As pessoas famosas nunca deixarão de ser lembradas porque deixaram um legado, mas pessoas simples como eu não poderão deixar. Então, quero dar essa oportunidade para que todos possam deixar algo, mesmo que seja apenas para sua família. Quero que meu filho possa falar comigo mesmo depois que eu partir — explica.
Para que o clone fosse o mais fiel possível, Martiniak contou com a ajuda de um segunda inteligência artificial abastecida por ele com conteúdos de Psicologia disponíveis na internet e que replica o conhecimento de psicólogos.
Caso surjam dúvidas quanto à legalidade da criação, Martiniak já tem inclusive advogado pronto, criado da mesma forma, abastecido com conhecimentos de Direito e legislação, em uma IA.
— Eu não preciso ser nada, apenas preciso alimentar a IA com o que necessito. Criei uma com a mente dos melhores programadores e ela cria o que solicito. Tudo o que eu busco para fazer isso é público e está disponível na internet através de livros, cursos, podcasts e reportagens que qualquer pessoa pode ter acesso — explica.
A tecnologia permitiu que Martiniak criasse, inclusive, um professor de matemática para que reforçasse o aprendizado do filho.
— Foi a única coisa que fiz pensando em não ganhar dinheiro. Meu intuito foi realmente para deixar para meu filho. Mas comentei com amigos empresários que sem sequer verem o protótipo me pediram quanto tempo eu levaria para fazer o deles — acrescenta.
Com domínio de site já aberto, a Legado.life é apenas um dos produtos criados pelos chatbots (softwares que simulam conversas) da Brain Byte. Antes que a ficção científica se torne realidade, outras aplicações, mais próximas ao que se vê atualmente, estão disponíveis com tecnologias semelhantes àquela que cria clones virtuais.
É possível usá-las em atendimentos e suportes ao cliente com a mesma lógica do segundo cérebro: incluir no robô tudo aquilo que for necessário para a interação. O projeto de Martiniak está no radar do TecnoUCS e assinou cinco contratos nas primeiras duas semanas de divulgação. São serviços de atendimento em clínicas médicas e até um avatar em uma empresa metalúrgica.
Os custos para ter seu próprio clone são altos. O orçamento, segundo Martiniak, é de R$ 200 mil para ser entregue em até um ano.
Descobrindo mercados
O Parque de Ciência, Tecnologia e Inovação da Universidade de Caxias do Sul auxilia o projeto a descobrir quais serão as aplicações de mercado. De acordo com o coordenador executivo do TecnoUCS, Cesar Panisson será a forma como o segundo cérebro será utilizado que irá determinar o quanto inovador ele será:
— Em termos de base tecnológica e o que ele pode entregar para o mercado é algo extremamente inovador. A tecnologia para fazer o que foi feito já existe, o que é inovador é como usar ela de forma a criar uma solução.
O processo de incubação de uma startup em um acelerador de tecnologias como o TecnoUCS facilita a descoberta de mercados. Ainda segundo Panisson, a criação de Martiniak pode ser utilizada em assistentes virtuais em áreas de saúde, hotelaria ou até mesmo em relações pessoais.
— Ele cria uma base de conhecimento específica, aplica em avatares e modula a voz para fazer uma conversação. Isso vem sendo desenvolvido de forma mais rápida nos últimos tempos, quando antes era apenas por mensagens escritas. O que já é possível fazer, por exemplo, é a tradução de textos de diferentes línguas da forma escrita para a falada — diz.
Inteligência, artificial
Na opinião da mestre em Filosofia Laina Brambatti, é o inconsciente que move as decisões humanas que fará clones virtuais não serem idênticos às suas versões reais. Ou seja, inteligências artificiais seguirão sendo inteligências, mas sempre artificiais:
— Por mais que tenha incluído todas as informações que ele possa ter imaginado, é impossível abraçar todas as contingências que nos torna humanos. Somos uma vastidão muito maior. Em grosso modo, 90% de quem a gente é, é fruto de motivações inconscientes. Isso não é ele, é uma criação artificial, ficcional. E sendo a criação autoficcional, dentro de uma inteligência chamado artificial, e esse nome é importante, logo, jamais será idêntico a um ser que foi criado de forma natural.
A criação de Martiniak foi abastecida com uma série de premissas. São elas que conduzem as inferências lógicas da IA em novos contextos que possam surgir, a partir das possibilidades levantadas nas interações.
— Se ele costuma responder com impulsividade a uma oferta de venda, por exemplo, a versão digital possivelmente agirá dessa forma em situações parecidas. A inteligência artificial usa uma lógica, faz uma tentativa de racionalização e só irá trabalhar a partir do que lhe foi fornecido — explica.