Foi no auge da pandemia, quando Arthur tinha quatro anos e aprendeu a ler e a escrever sozinho, sem ser necessário qualquer estímulo dos pais, que Morgana Pelegrini e Luiz Veras decidiram levar o primogênito a uma neuropsicóloga, para a avaliação que diagnosticou o que eles estavam imaginando: Arthur é superdotado. A surpresa maior, no entanto, foi quando o casal passou também por avaliação, que a família descobriu ser toda ela superdotada.
O que os distinguiria ainda mais de uma família típica, contudo, foram os diagnósticos que viriam a seguir: mãe e filho foram detectados também com TEA (Transtorno do Espectro Autista), enquanto o pai, além do TEA, recebeu o diagnóstico de uma terceira atipia, o TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade).
A singularidade da própria situação que vive em casa fez com que Morgana se especializasse no atendimento a famílias neurodivergentes, que atualmente realiza no complexo especializado em saúde mental Jordani Mental Care, em Caxias do Sul.
Na véspera do Dia Internacional das Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD), comemorado em 10 de agosto, Morgana explica que a vida de pessoas cuja superdotação está associada a outra atipia, como o TEA ou o TDAH, traz o desafio diário de explorar potencialidades ao mesmo tempo em que tem de lidar com limitações físicas e emocionais:
- Posso dizer que é como um cabo de guerra dentro do cérebro. Todos nós temos facilidade em aprender, mas enfrentamos dificuldades de interação, de ser mais inflexível, de precisar de uma rotina previsível. O Arthur, ao mesmo tempo em que tem uma imaginação muito fértil para criar histórias e desenha muito bem, tem dificuldade para segurar talheres. Diariamente a gente vive essa necessidade de equilibrar na balança uma alta capacidade da superdotação e uma limitação própria do nosso transtorno.
Por se tratar de uma população rara, uma vez 2 a 5% da população mundial tem superdotação, enquanto 14% destas pessoas têm outra atipia associada, é ainda mais importante a busca pelo diagnóstico, a fim de ter, acima de tudo, mais autoestima e qualidade de vida.
Ao contrário do TEA e do TDAH, a superdotação não é considerada um transtorno, por não estar enquadrada na Classificação Internacional de Doenças (CID). É considerada uma condição atípica do neurodesenvolvimento. Isso, porém, não torna mais simples a vida da pessoa superdotada, especialmente na infância, e particularmente na escola. A principal dificuldade que uma criança superdotada enfrenta costuma ser o fato de que, tendo uma facilidade maior para aprender ou realizar uma tarefa, logo tendo a ficar entediada com a repetição de conteúdo, perdendo assim o interesse em participar da aula.
"Enquanto uma pessoa típica pode precisar de 10 repeticões para aprender algo novo, o superdotado precisa de uma ou duas, no máximo. Imagina, então, este cérebro recebendo tantas vezes a mesma informação"
DRA. MORGANA PELEGRINI
Médica especialista em famílias neurodivergentes
- Enquanto uma pessoa típica pode precisar de 10 repetições (para aprender algo novo), o superdotado precisa de uma ou duas, no máximo. Imagina, então, este cérebro recebendo tantas vezes a mesma informação. Essa criança vai se sentir entediada e ficar andando pela sala, vai ficar conversando, sem que muitas vezes o educador entenda o motivo daquilo. O ideal seria que se colocasse a criança numa série compatível com a sua cognição, ou enriquecer o currículo, o que não é feito _ analisa Morgana.
Outra dificuldade comum entre crianças superdotadas, segundo a especialista, é a estereotipação:
- O superdotado é diferente do gênio que as pessoas costumam ver mostrando que sabem tudo nos programas de televisão
DETECÇÃO É IMPORTANTE TAMBÉM NA FASE ADULTA
Se, na infância, o diagnóstico pode ser decisivo para a criança alcançar uma vida mais plena e realizar todo o seu potencial criativo, também na fase adulta ter o diagnóstico de superdotação é importante. Morgana Pelegrini relata que, quando passou a conhecer melhor o próprio funcionamento, convivendo com a superdotação e com o autismo, passou a controlar melhor crises de raiva e aprendeu a dosar melhor o próprio esforço emocional, a fim de evitar sobrecargas. Como resultado final, obteve uma maior autoestima e mais preparo para explorar suas capacidades incomuns.
- Durante toda a vida tentei me encaixar nos ambientes que frequentava, sempre com a sensação de não pertencer. Acabava camuflando o que eu era realmente, e rebaixando o meu potencial. Fazia o mínimo, apenas para poder passar de ano, porque os assuntos não me interessavam.Tendo o diagnóstico, passei a entender que funcionava de forma diferente e assim me conheci melhor. Até pouco tempo, eu sequer sabia do que eu gostava, porque tinha passado a vida tentando me encaixar no gosto das outras pessoas. Quando tu passar a funcionar como você é, ao invés de tentar se encaixar apenas, esse é o benefício maior, que traz todos os outros consigo.
Em sua atuação na clínica Jordani, Morgana ajuda famílias neurodivergentes a investigar comorbidades associadas a essa condição:
- Normalmente, quando faço o histórico de um paciente que chega na clínica e percebo que há possibilidade de ser um superdotado, encaminho para a avaliação adequada. Se a condição for confirmada, este paciente retorna até mim para fazer a investigação de comorbidades que são mais comuns em pessoas neurodivergentes, como uma doença autoimune, uma alergia, um problema gastrointestinal.
A SUPERDOTAÇÃO EM DADOS*
- A superdotação é um fenômeno de base genética que envolve capacidades notáveis intelectuais, socioemocionais e de aprendizagem. Alguns estudos sugerem que entre 2% e 5% da população global pode ser considerada superdotada. Os números variam de acordo com as definições e métodos de identificação utilizados em diferentes países.
- No Brasil, estima-se que cerca de 4 milhões de pessoas sejam superdotadas. Apesar desse número significativo, em 2023, apenas 26.815 alunos foram identificados como superdotados na educação básica brasileira. Essa diferença pode refletir uma subnotificação ou a falta de políticas eficazes para a identificação e apoio a esses indivíduos.
- Em Caxias do Sul, segundo a Secretaria Municipal da Educação, atualmente, há 63 crianças com altas habilidades na rede municipal de ensino. O montante representa 0,14% do total de estudantes da rede municipal, que é de 45 mil alunos. Em 2021, o percentual de estudantes identificados era de 17 alunos.
ENTENDA A SUPERDOTAÇÃO*
As capacidades cognitivas avançadas podem resultar em uma série de desafios e oportunidades. Por um lado, os superdotados podem ter uma alta performance acadêmica e contribuições transformadoras em suas áreas de interesse. Por outro, podem enfrentar desafios emocionais e sociais, como isolamento, estresse e ansiedade, devido às expectativas elevadas e à intensidade emocional que vivenciam.
Algumas características que ajudam a identificar um superdotado são: ter uma memória excepcional, processar informações rapidamente, ser criativo, solucionar problemas de forma distinta e pensar de forma diferente da maioria.
A identificação precoce permite ações para um desenvolvimento mais adequado da criança, na mesma medida em que uma avaliação inadequada pode prejudicar o indivíduo e todo o seu crescimento. A avaliação correta não se resume à identificação da superdotação, mas auxilia a pessoa a acreditar em suas capacidades, contribuindo para seu autoconhecimento e mudanças necessárias na sua rotina.
Os resultados dos testes são interpretados de forma abrangente, considerando a história de vida da criança. Muito se fala sobre o Quociente de Inteligência (QI), porém esse teste é apenas uma parte da avaliação. O laudo deve incluir perfil e nível de superdotação, estilo de aprendizagem, perfil cognitivo e socioemocional, e adequações necessárias tanto no ambiente escolar quanto familiar.
A informação sobre superdotação é essencial para permitir o desenvolvimento saudável e equilibrado das pessoas superdotadas, levando a contribuições importantes para a sociedade. A diferença entre a prevalência estimada e o número de identificados no Brasil explicita a urgência de melhorias nas políticas de identificação e apoio aos superdotados.
*Fonte: Jordani Mental Care, com MCOM Comunicação