“Como posso ajudar?”. Foi com essa simples pergunta que um grupo de amigos chegou ao quartel de bombeiros de Caxias do Sul no início deste mês, pois estavam preocupados com as consequências da enxurrada. A atitude, inicialmente sem grandes pretensões, tornou-se em um movimento de engajamento solidário que vai desde a alimentação dos envolvidos no trabalho de suporte às pessoas impactadas pela chuva até ao auxílio nos resgates realizados pela corporação.
Esse é um dos inúmeros casos de voluntários que têm se colocado à disposição e que ajudam as forças de segurança no momento mais difícil que o Rio Grande do Sul enfrenta em sua história. Iniciativas como essa têm surgido em todas as regiões do Estado. Em comum: a vontade de fazer o bem.
Conforme a Defesa Civil, são cerca de 6,8 mil oficiais atuando em todo o Estado, entre Polícia Civil, Brigada Militar, Corpo de Bombeiros e Instituto Geral de Perícias (IGP). Contudo, não há como quantificar o número de voluntários.
Por meio de reportagens nos veículos de comunicação e também de postagens em redes sociais, nota-se que são milhares os voluntários que doam seu tempo e se unem aos esforços dos oficiais. Um dos casos é o da foto abaixo, em que os bombeiros caxienses ganharam o reforço de um grupo que mobilizou pelo menos cinquenta pessoas.
Um dos voluntários, o corretor imobiliário Larry Fernandes, 39 anos, lembra que o grupo começou oferecendo carona aos bombeiros de outros Estado que chegaram a Caxias no dia 2 de maio, e precisavam se deslocar a Galópolis, após o deslizamento de terra. A primeira ação nasceu de um simples “salchipão” (o famoso pão cacetinho com salsichão), na sede da corporação, na Rua Vinte de Setembro.
— Trocando uma ideia, eles (bombeiros) falaram: “nosso efetivo agora vai aumentar de x para 2x, só que a gente faz o café da manhã, almoço, jantar. Não temos o que fazer”. Ouvindo isso, começamos a nos mobilizar — recorda Fernandes.
Divisão de tarefas
A partir desse primeiro convívio com os bombeiros, o grupo de voluntários cresceu e se dividiu em dois auxílios importantes: na cozinha solidária para os bombeiros e no apoio às equipes de resgates. No início, o grupo cozinhava a maioria das refeições. Depois, em parceria com restaurantes, os voluntários organizaram a entrega de marmitas para os soldados.
Por outro lado, jipeiros e trilheiros, que costumam se aventurar pelo interior, passaram a reforçar as equipes lideradas por bombeiros, especialmente para chegar a localidades com acesso dificultado. Ao acompanharem o trabalho de perto, os voluntários ganharam uma nova percepção sobre o trabalho das forças de segurança.
— São verdadeiros heróis. Eles trabalham com poucos recursos, mas conseguem fazer. E nos receberam de braços abertos. Isso é um diferencial também. Chegamos lá e todos, sem exceção, são pessoas totalmente capacitadas e do bem.
Além desse auxílio, Fernandes conta que o grupo juntou donativos para levar a Muçum. Nessa mobilização, conseguiram enviar para lá um caminhão com 20 toneladas de doações.
Ação entre amigos
A onda de solidariedade que toma conta do Estado faz com que inúmeros grupos migrem para os municípios vizinhos para auxiliar no que for preciso. O veterinário Roque Forner Júnior, 37, juntou-se com mais quatro amigos para ajudar. Eles estão recolhendo donativos na clínica que atuam e indo às cidades que precisam. A primeira leva de itens, que encheu uma caminhonete, foi transportada no dia 7 de maio para Roca Sales. Já a segunda, na última quarta (15). A ajuda não parou por aí.
Ao chegarem no destino, Forner e os amigos passaram no Centro de Referência da Assistência Social (Cras) para recolher informações. Primeiro, com a própria caminhonete, o grupo distribuiu os donativos pela cidade.
— A gente distribuiu até água. O pessoal estava precisando, as crianças. Nós levamos pastel, lanche pronto, sanduíches, essas coisas. Distribuímos aquelas fórmulas para beber, fralda, produtos de limpeza. Eles estavam precisando bastante também pra limpar as casas e coisas. Mas o que era mais desesperador era a água, porque eles estavam sem — descreve o veterinário, lembrando que ração e roupas para os bichinhos também foram doadas.
Na volta ao Cras, o grupo também ajudou a carregar itens e a dar carona para moradores. Muitos não conseguiam carregar as doações para casa.
Como ajudar: o grupo segue recolhendo donativos para ajudar mais cidades do Estado. Os itens são recolhidos na clínica veterinária Salute (Rua Moreira César, 1.903).
"É um engajamento total"
Mais de 10 mil peças de roupas, mil garrafas da água, 400 cestas básicas e contando. Na Assembleia de Deus de Caxias, a igreja organizou um espaço para receber doações, fazer a triagem e encaminhar para as áreas afetadas.
Apesar do número impressionante das vestimentas, a sede (Rua Pinheiro Machado, 3.169) também recolhe alimentos não perecíveis para cestas básicas, água, fraldas, itens de higiene pessoal e material de limpeza. Os caminhões são enviados a municípios da Serra e Vale do Taquari. Na última quarta (15), por exemplo, um carregamento foi enviado para municípios como São Sebastião do Caí, Feliz, Portão, São Leopoldo e Canoas.
— Graças a Deus nós estamos procurando socorrer este povo, não é? Sabemos que é um engajamento total — afirma o pastor Joel Michel, presidente da Assembleia de Deus em Caxias.
Michel, que também é vice-presidente da Convenção dos Pastores da Assembleia de Deus no Estado, lembra que o trabalho da igreja é em todo RS. O próximo passo, como relata o religioso, é chegar em municípios que ainda estão com acesso dificultado. Já em Caxias, a ajuda também ocorre de outras formas. Uma delas é emprestar uma das salas da congregação em Vila Cristina para atendimento médico. A Unidade Básica de Saúde (UBS) da comunidade foi destruída.
— Nós cedemos ali uma de nossas salas para que os médicos pudessem dar ali o atendimento do posto de saúde — diz o pastor.
Comboio solidário do Beltrão para o Estado
Uma rede de contatos do bairro Euzébio Beltrão de Queiroz leva um comboio às cidades do Estado. Como conta o presidente do Vielas Espaço Cultural, Fernando Morais, a entidade, ao lado da Associação de Moradores do Bairro (Amob) e parceiros, conseguiu reunir 40 caminhonetes, duas caçambas, duas plataformas com maquinário, um quadriciclo, cinco carros de apoio, uma carreta e três caminhões baú. Além dos donativos, os mais de 150 voluntários, que vão se revezando, ajudam em limpezas de ruas e casas. A ação ocorre desde o início de maio, então o grupo fez também resgates.
— Nós temos um trabalho desenvolvido já há algum tempo aqui dentro do bairro e, devido à seriedade, as pessoas começaram a reconhecer como um trabalho bem desenvolvido e bem organizado. É um trabalho sério e com transparência. Conseguimos reunir as principais lideranças aqui do bairro e pessoas que também atuam com algumas empresas, porque aqui no bairro tem alguns empresários. Então, procuramos os empresários aqui do bairro e ao redor aqui do bairro para se juntarem conosco nesta ação — explica Morais.
Assim como outros grupos, os voluntários vão revezando diariamente as cidades para levar os donativos. Alguns dos municípios atendidos são Muçum, Roca Sales, Estrela, Canoas e Novo Hamburgo, além da comunidade de Galópolis, em Caxias, e Bento Gonçalves.
Como ajudar: a ação segue e, por isso, o grupo, nomeado de SOS Beltrão, aceita doações de itens para famílias atingidas e também de combustível para os veículos do comboio. A contribuição pode ser feita por chave PIX, pelo CNPJ 50.221.139/0001-33. Mais informações na página @VielasEspacoCultural, no Instagram.
“Todo o Brasil está ajudando”
A instabilidade do clima em maio também foi um desafio para os voluntários. Após as chuvas da primeira semana, a estetacosmetóloga Eduarda Andriola, 25, organizou um grupo para auxiliar na limpeza de casas em municípios que o rio já estava baixando, como Muçum e Santa Tereza. Ela conseguiu reunir um grupo de 40 pessoas e também donativos para levar.
— Eu fiquei me questionando muito quando começou essa catástrofe, as maneiras que eu poderia ajudar. Conversando comigo mesma, fiquei me questionando assim: daqui alguns anos, quando meus filhos estiverem estudando sobre essa catástrofe e vierem me perguntar o que eu fiz pra agir, como que eu pude ajudar? E eu até então tinha feito doações em dinheiro, ou levado os mantimentos nos pontos de coleta. Eu decidi que só aquilo não era o suficiente — conta Eduarda.
No primeiro final de semana marcado para ação, nos dias 11 e 12 de maio, a chuva forte voltou à Serra e estradas foram bloqueadas. O grupo não conseguiu ir. Mas, o pai de Eduarda, Ricardo Demore, 59, e mais quatro amigos decidiram ir mesmo assim. Eles levaram parte dos donativos e ajudaram até que o rio subiu, quando precisaram retornar a Caxias.
Como conta o empresário do ramo de caminhões, o destino foi São Sebastião do Caí, onde depararam-se com "cenas aterrorizantes". O grupo conseguiu ajudar a limpar casas, descarregar um caminhão do Paraná com donativos e ajudar a carregar outros caminhões que distribuíram os itens para população.
— Nós gaúchos temos que nos orgulhar de podermos estarmos ajudando. Não só nós gaúchos, porque todo o Brasil está ajudando. Está vindo gente de tudo que é lugar, porque a coisa está muito feia aqui, muito séria mesmo — diz Demore.
Como ajudar: se o tempo permitir, o grupo, desta vez completo, ajudará mais cidades. Os donativos estão sendo recebidos na ProMóvel (Rua Antônio Zanini, 905, bairro São José).
Da Serra para a Capital
As cheias que atingiram Porto Alegre e a região metropolitana criaram um movimento de civis ajudando em resgates com barcos e motos aquáticas. Um dos voluntários que participa deste movimento é o engenheiro florestal Lucas Pasetto, 39, nascido em Antônio Prado e morador do bairro Menino Deus, na Capital. O pradense começou a ajudar em resgates com o caiaque dele.
Pasetto relembra que a água subiu rapidamente no Menino Deus no dia 6 de maio. Muitas pessoas não conseguiram deixar os prédios e casas e embarcações maiores não acessavam mais o hall de alguns prédios. O caiaque, com uma estrutura menor, passou a ser essencial nesse resgate. Moradores do bairro, incluindo o pradense, criaram até mesmo uma base improvisada para organizar as ações.
— É o pessoal da academia, o pessoal do mercadinho, é o filho de uma senhora que mora na esquina, pessoas que eu não conheço, pessoas que eu nunca vi. A gente se agrupou, conseguiu um toldo. E aí vieram os voluntários, mais o pessoal voluntário dos pets, e mais uma médica que mora na rua. Então, a gente foi se organizando com contatos — descreve Pasetto.
O pradense percebeu que precisava de mais dois caiaques para acelerar os resgates. Em uma noite abriu uma vaquinha e juntou a quantia. Um dos casos que marcaram o engenheiro, inclusive, só foi possível graças a uma das novas embarcações. Um senhor de 65 anos começou a sangrar pelo rompimento de uma úlcera. Para conseguir retirá-lo do prédio, apenas o caiaque conseguia fazer este resgate. Os voluntários conseguiram fazer com que o idoso chegasse ao hospital, onde está internado.
— Usando o caiaque que o pessoal me ajudou a comprar é que conseguimos entrar no hall do prédio para tirar ele de lá. Depois ele foi num barco de um dos voluntários, mas sem o caiaque não íamos tirar ele de lá — lembra Pasetto.
Ajuda de Antônio Prado
A ligação do voluntário com Antônio Prado trouxe uma segunda ação. Com a água baixando, o grupo já pensa na limpeza dos prédios e casas. O engenheiro iniciou uma campanha para arrecadar lava-jatos ou dinheiro para comprar o equipamento. Pasetto já tem contatos para depois compartilhar o item com outros grupos de Canoas, Eldorado do Sul e da zona norte de Porto Alegre. Ou seja, esses lava-jatos vão servir para inúmeras famílias. O pradense destaca que há muitas pessoas na Capital que estão precisando de ajuda, inclusive no Menino Deus.
— Tem muita gente aqui (no bairro) também que vai precisar de ajuda — observa Pasetto, lembrando, por exemplo, da vizinha que é costureira e perdeu o ganha-pão dela nesta cheia.
Quando solicitou ajuda para os caiaques, muitos pradenses mandaram mensagens pedindo como poderiam ajudar. Assim, Pasetto estendeu o pedido dos lava-jatos e outros itens, principalmente porque o primeiro está em falta na Capital. As doações de Antônio Prado para o grupo serão levadas para Porto Alegre pela empresa de transporte de Ezequiel Sartori. Ao mesmo tempo, com o dinheiro, os voluntários já conseguiram comprar quatro equipamentos.
Como ajudar: doações podem ser feitas por chave PIX, por telefone (54) 99682-0303. Em Antônio Prado, donativos são recebidos na Paróquia Sagrado Coração de Jesus para depois serem enviados aos municípios da Serra, Região Metropolitana e para Capital.
Monitoramento de pacientes
Os diversos bloqueios de rodovias criam também um grave problema a pacientes em tratamentos contínuos, especialmente aqueles de doenças graves, como o câncer. Por isso, o Movimento Todos Juntos Contra o Câncer, o Instituto Camaleão, Instituto de Governança e Controle do Câncer (IGCC) e Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale) lançaram um formulário destinado aos pacientes oncológicos afetados pelas enchentes. É o Força Onco RS.
A partir disso, uma rede de voluntários pode monitorar os tratamentos. As informações são enviadas também a hospitais que aliaram-se ao movimento. Em Caxias, um dos apoiadores da iniciativa é o médico oncologista André Reiriz.
— Por exemplo, aqui em Caxias, a gente tem 46 municípios que se reportam ao município. Então, muitos pacientes podem estar em Gramado e Canela, por exemplo. São cidades que, via Sistema Único de Saúde (SUS), os pacientes são tratados em Caxias. Por aí já se percebe uma dificuldade de acessar as estruturas hospitalares. A construção é neste sentido. Ou criar uma rota humanitária, ou prover medicação, ou prover orientação e monitorar esses pacientes por um atraso que seja sensato e possível. Essa é a mobilização a partir dessas instituições não governamentais que criaram esse elo por um formulário online — explica Reiriz.
Saiba mais sobre a Força Onco RS clicando aqui.