O fim da emergência global de saúde de covid-19 foi decretado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 5 de maio de 2023, mas os reflexos das medidas tomadas para frear a transmissão da doença seguem visíveis em diferentes aspectos da sociedade. Aulas remotas e escalonadas, por exemplo, afetaram milhares de estudantes em pleno processo de aprendizagem. Crianças e adolescentes que agora sentem dificuldades em acompanhar conteúdos e, em alguns casos, até em ler e escrever.
Matriculado aos sete anos na Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Ester Benvenutti, em Caxias do Sul, Leonardo Drum, 10, passou os três primeiros anos do ensino básico tendo aulas em casa ou revezadas com os colegas em dias específicos da semana.
A falta de acompanhamento diário de um professor e o improviso dos pais em ensinar em casa são apontados pela mãe, Solange Imer, como os motivos que levaram o filho a ter dificuldade em ler e escrever, mesmo matriculado atualmente no 3º ano.
— A pandemia aconteceu em meio à alfabetização dele. Fez a pré-escola aos cinco e não pode entrar no 1º ano porque faria seis em abril. Então, entrou com sete anos em meio à pandemia e ficamos à mercê das aulas em casa, e ele não conseguiu acompanhar. Passou direto para o segundo ano em turmas com escala, e no terceiro não sabia nem escrever o nome — contou Solange.
Desde 2010, uma resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE), que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais, recomenda que não haja reprovação nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental. Segundo Solange, foi um acordo entre Secretaria Municipal da Educação (SMED), escola e pais que manteve Leonardo no terceiro ano em 2023.
— Esse atraso vai ficar na nossa memória por muito tempo. Me dói lembrar de ir na escola e pedir para que ele fosse reprovado. Uma mãe quer sempre ver o filho avançando — desabafou.
Então proprietária de uma estética na Avenida Rio Branco, Solange externava para os clientes a preocupação com a alfabetização do filho e não demorou para encontrar a solução mais perto do que imaginava. Vizinha ao estabelecimento, em um apartamento no segundo andar do Edifício Adriano, estava a professora aposentada Eolina Kayser, 88, pronta e disposta a ajudar.
Desde novembro, aluno e professora trabalham semanalmente para reconhecer e unir letras que formam palavras e frases. As aulas acontecem em uma mesa da cozinha, e o material didático chega diariamente na porta do prédio. Foram as manchetes do Jornal Pioneiro as primeiras palavras lidas por Leonardo e que seguem sendo o objeto de estudo nos recortes colados em cartolina.
— Uma colega de Farroupilha me deu livros antigos que trabalhamos também, mas o jornal está aqui todos os dias, eu preciso ter sempre alguma coisa para ler. Começamos do básico com letras e sílabas, até que ele foi aprendendo. As palavras que vejo que saem com maior dificuldade faço ele repetir e encontrar outras iguais no meio do jornal — disse Eolina.
De mochila e com as tarefas solicitadas pela professora particular feitas, Leonardo chega todas as manhãs de terça ao apartamento de Eolina. Nunca sem trazer uma lembrança de agradecimento à atenção da senhora responsável por ajudá-lo a decifrar letras até então desconhecidas por ele.
— Se criou um vínculo de amor e amizade. O Leonardo quer agradar, pede para que a vó faça compotas de doces para presentear e, como ela não aceita pagamento, sempre trazemos algum mimo — contou a mãe.
“Não fui vacinada contra o trabalho”
A memória da professora, que não sabe precisar em que ano da década de 2000 deixou para sempre a sala de aula, não é mais a mesma. No entanto, uma frase dita por uma colega não é esquecida por Eolina:
— A dona Enedy Alberti (secretária municipal de Educação de 1977 a 1983) disse: "Vem cá, tu não foi vacinada contra o trabalho". Trabalhei com Ensino Fundamental, matemática e ciências e depois me especializei para dar aulas em classes especiais. Me aposentei no município e depois passei no concurso do Estado — relembrou.
Foi na EMEF Angelina Sassi Comandulli, no bairro Santa Fé, que Eolina alfabetizou a maioria dos seus alunos. Atualmente com próteses nos dois joelhos, sai de casa apenas para exames e acompanhada do filho. A visita semanal de Leonardo, que segundo ela já está “quase pronto”, é uma troca que envolve aprendizado e valorização.
— Fui valorizada, né? Lembraram de mim e do que eu sei fazer que é ensinar. Quando sento aqui pra dar aula, meu joelho nem dói — resumiu.