Ações cotidianas como escolher uma determinada marca e tipo de café na prateleira do supermercado ou uma peça de roupa em uma loja da cidade nem sempre são tarefas simples para quem tem deficiência visual ou mobilidade reduzida.
A partir desta quinta-feira (6), a acessibilidade deste público na hora das compras passa a ser garantida por lei em Caxias do Sul. Isso porque passa a vigorar a Lei Complementar nº 721, de 23 de fevereiro deste ano, que acresce ao Código de Posturas do Município a obrigatoriedade de shoppings, lojas e supermercados disponibilizarem um ou mais funcionários para auxiliar estes clientes durante todo o horário de expediente, incluindo em feriados e aos finais de semana. O descumprimento pode resultar em advertência e notificação por escrito na primeira infração, para adequação no prazo de um mês. Em caso de reincidência, o estabelecimento pode ser multado em até R$ 4.262,00, podendo chegar a ter alvará suspenso.
O atendimento personalizado agora garantido por lei motiva Nilson Fernando Rodrigues de Moraes, 50 anos, a acessar espaços comerciais sozinho. Cego há três anos, o morador do bairro Cruzeiro ainda se adapta à vida sem enxergar absolutamente nada e, justamente pela falta ou precariedade do auxílio necessário, não tem o hábito de sair sem a companhia de algum familiar ou amigo como guia vidente, ou seja, alguém que oferece informações claras e objetivas para que a pessoa possa interpretar cada uma delas corretamente. Essa situação tende tende a mudar a partir do cumprimento da lei na cidade.
— Isso dá bastante autonomia para pessoa porque vou poder ter a certeza de que vou chegar num local e ter um atendimento como qualquer outra pessoa que enxergue — disse.
A convite do Pioneiro, Moraes topou a experiência de percorrer algumas lojas do Prataviera. Localizado no Centro de Caxias do Sul, o shopping está entre os estabelecimentos dispostos a garantir a conformidade com a nova lei.
Acessibilidade ainda sob desafios
Realizado antes da lei ser de cumprimento obrigatório, o percurso realizado com Moraes demonstrou que a garantia do atendimento inclusivo passa pela empatia, boa vontade e atenção de quem for atender uma pessoa com necessidades especiais e que atitudes simples que muitas pessoas desconhecem, simplesmente por não terem contato com este universo, ainda são barreiras para a plena acessibilidade.
O coordenador executivo da Associação dos Pais e Amigos dos Deficientes Visuais (Apadev), Tiago Peres, que também acompanhou a visita ao shopping, acredita que o novo regramento seja um importante passo que poderá contribuir para a conscientização da sociedade acerca da inclusão e entende que o exercício da lei poderá tornar Caxias do Sul referência neste quesito.
— A gente ainda não sabe como vai ser a adesão, mas a partir da vigência da lei essa mobilização começa a ocorrer. Por enquanto, não há muito movimento porque a demanda, por vezes, é até mesmo baixa, mas com a lei o próprio usuário vai passar a se sentir mais seguro para frequentar esses espaços. As pessoas com deficiência estão hoje reclusas, em casa, e essa lei vem para dizer: "venham que a gente vai acolher vocês" — afirmou Peres.
A lei proposta pelo vereador Gilfredo De Camillis (PSB) não exige treinamento nem a contratação de especialistas. Ela prevê apenas a garantia de que o consumidor contará com uma escuta atenta que se reverta no auxílio por meio de uma informação, uma condução, resultando no atendimento de suas necessidades. Alguns estabelecimentos estão buscando este tipo de orientação junto a entidades como a própria Apadev e o Instituto da Audiovisão (Inav). Trata-se de uma sensibilização a ser realizada com as equipes, incluindo as lideranças, como gerentes de supermercados, que poderão replicar aos demais colaboradores.
— A capacitação seria o ideal, porque é importante saber como guiar, como conduzir. Mas tem ambientes que eles têm de ir acompanhados porque as pessoas não sabem atender. Ainda temos um caminho longo pela frente, mas que precisa acontecer e muita coisa acontece a partir da lei. Esta lei é muito importante porque interfere diretamente na autonomia e independência das pessoas com deficiência visual. É um movimento que vai crescendo — avaliou a coordenadora do Inav, Fernanda Ribeiro Toniazzo.
No Prataviera Shopping, a bombeira Fernanda Pereira Silva é a profissional acionada pela equipe de segurança quando um visitante com deficiência, que necessite de auxílio para as compras, ingressa no shopping. A porta automática foi uma das primeiras barreiras para Moraes, demonstrando que, no caso de pessoas com deficiência visual, o auxílio, por vezes, pode ser demandado ainda antes de o cliente entrar no estabelecimento.
Após se apresentar e se identificar, Fernanda conduziu Moraes até a porta de cada loja, ficando à espera dele durante cada atendimento. Na visita acompanhada pela reportagem, ele entrou em uma loja de perfumes, em outra de vestuário e também em uma tabacaria. As situações colocaram à prova os desafios da acessibilidade e também evidenciaram atitudes que, de fato, apontam para um futuro mais inclusivo.
— Agora tendo esse apoio do pessoal a gente até poderia vir, chegar na frente e poder contar com o pessoal nos conduzindo. Foi bem tranquilo, acho que é por aí, a gente vai descobrindo coisas novas e tudo vai do diálogo. A gente pedindo e a pessoa se disponibilizando a descrever em detalhes, é o que conta — concluiu Moraes.
O que dizem as entidades do comércio sobre a lei
— É uma questão apenas de formalização, porque o comércio já tem essa sensibilidade com todos os clientes que têm algum tipo de deficiência ou dificuldade. É natural que os atendentes ou lojistas que tenham suas portas abertas já tenham esse atendimento diferenciado na questão de poder ajudar. É um serviço que o comércio já faz, porque para vender seus produtos precisa ter um atendimento diferente.
Rossano Fernando Boff , presidente do Sindilojas Caxias.
— A legislação vem complementar o direito de inclusão das pessoas com deficiência visual. Além disso, é uma forma dos estabelecimentos se adequarem no melhor atendimento ao seu cliente.
Rita Bertussi, assessora Jurídica e de Relações Institucionais da CDL Caxias.
Pontos a serem observados
Com base na experiência vivenciada por Nilson de Moraes e com auxílio da Apadev, a reportagem elaborou uma lista destacando alguns pontos a serem considerados no processo de inclusão de pessoas com deficiência visual no momento das compras:
:: Atenção e interesse: perceber a necessidade ou perguntar, sem medo, de que forma a pessoa com deficiência precisa ser auxiliada é uma ação que pode garantir um atendimento mais confortável, tanto para o cliente quanto para o vendedor. A capacitação de colaboradores facilita ainda mais a relação, uma vez que dá o embasamento técnico para a condução adequada da pessoa com deficiência.
:: Autodescrição: descrever características da própria aparência pode até gerar certo desconforto para quem enxerga, mas trata-se de uma ação fundamental para um reconhecimento mais detalhado por parte de quem não enxerga. Junto do nome, a apresentação pode conter informações como a cor e forma do cabelo, cor da pele, cor dos olhos, modelo e cor de vestuário e qualquer outra característica que possa ser relevante no contexto do encontro. A autodescrição também fortalece a confiança da pessoa com deficiência visual em relação a quem a está acompanhando e auxiliando.
:: Audiodescrição do ambiente: a audiodescrição, eventualmente presente em obras de arte e filmes, por exemplo, é uma forma de traduzir imagens em palavras e, à pessoa com deficiência visual, proporciona o reconhecimento do espaço no qual ela se encontra, no caso do shopping ou de uma loja. Além de permitir que a pessoa tome conhecimento de elementos presentes no local, a descrição ambiental também promove a autonomia uma vez que, conhecendo o espaço, a pessoa poderá, eventualmente, passar a frequentá-lo sozinha com mais segurança.
:: Audiodescrição do produto: ainda na premissa de traduzir imagens em palavras, a audiodescrição do produto a ser comercializado e de outros produtos disponíveis na loja é essencial para quem não tem a capacidade de enxergar. Não poupar informações como cores, modelos e até mesmo preços e promoções disponíveis na loja pode render, até mesmo, mais vendas.
Informação pela inclusão
Com a ideia de espalhar a conscientização a respeito do tema, a Apadev também distribuiu pelo comércio cartazes que informam o significado das cores das bengalas utilizadas por pessoas com deficiência visual.
A de cor branca significa que a pessoa é cega; a bengala de cor verde significa que ela tem baixa visão; e a branca e vermelha significa que a pessoa que a utiliza é cega e surda.