Não foi simples chegar aos 133 anos. O aniversário de Caxias do Sul, comemorado hoje, é carregado de pessoas que acompanharam o crescimento das comunidades em que vivem, passos que confundem-se com a própria história do município. Para celebrar a data, o Pioneiro foi até os muros da cidade ouvir moradores que representam as forças social e comunitária que traduzem toda essa trajetória.
Galópolis, no extremo Sul, Pedancino, no Norte, Forqueta, na região Oeste, e São Luís da 6ª Légua, no Leste, formam os pontos geográficos oficiais que cercam o perímetro urbano. Nesses quatro cantos, gente que ama o lugar onde vive, que tem saudades dos tempos mais pacatos, mas admira a maneira como Caxias soube crescer e adaptar-se, transformando-se na referência que reúne hoje mais de 500 mil pessoas.
São histórias de vida, de entrega à comunidade, de acolhimento e simplicidade, de uma Caxias do Sul marcada por quem a vive, os caxienses.
Galópolis e a sorte de ter dona Carmen
"Início do perímetro urbano".
A placa que recebe os motoristas que chegam a Caxias do Sul pela região Sul, via BR-116, também serve de alerta. Ali, começa a movimentação mais acentuada. O que a sinalização não explica é que estão chegando em um local de gente que se orgulha do cantinho formado a partir de muitas gerações, e que até hoje cultiva o bairrismo gostoso e característico de Galópolis.
Entre os muitos moradores, uma senhora de 82 anos se destaca pelo espírito inquieto e esperançoso, além de uma história fantástica para contar. Dona Carmen Maria Basso Festugatto é a caxiense típica. Entusiasta da vida e apaixonada pelo bairro e a cidade em que nasceu e de onde nunca saiu, carrega nas lembranças a Galópolis de outros tempos, e vive feliz com a oportunidade de vê-la mudar dia após dia.
Professora por quase três décadas, a filha da terra também foi diretora da Escola Estadual Ismael Chaves Barcellos, responsável por tantos episódios marcantes e que ajudaram a construir a comunidade.
— A gente movimentava muito o pessoal. Organizávamos bailes, realizávamos a gincana da escola e do bairro. Tudo para angariar fundos para a própria escola, que sempre teve muitas dificuldades. Era uma equipe grande, várias voluntárias. Vivíamos para integrar todos nas atividades — relembra Carmen.
Tendo convivido durante anos com praticamente todas as famílias em virtude da função de educadora que exercia, a ex-diretora tem viva na memória as relações com pais e alunos, e a maneira como as conduzia.
— Nosso diálogo era estreito. Procurava as mães para falar do comportamento dos filhos, alertava sobre eventuais problemas e buscávamos, juntos, estar presentes — aponta, sem imaginar quantas vidas foram impactadas devido à preocupação de quem sempre soube lidar com crianças.
Questionada sobre qual a maior saudade, é justamente o cotidiano com os alunos que enche os olhos de Carmen de brilho e de uma nostalgia que nos faz viajar no tempo.
Família por essência
Ao visitar a escola ao seu lado, fica fácil entender a importância que teve e ainda sustenta dentro da comunidade. O carinho de antigas colegas comprova. Entre as conversas, uma ex-funcionária de quando comandou a instituição resgatou uma frase de Carmen que serviu de conselho à época, e jamais foi esquecido. Segundo a amiga, ao falar sobre a criação do filho em casa e o equilíbrio entre erros e acertos, Carmen foi categórica:
— A gente peca por amor.
A sinceridade marcou, e ajudou a diminuir eventuais culpas que inevitavelmente surgiram desde então.
— Galópolis tem a característica da proximidade entre os vizinhos, a divisão de problemas. De contar um com o outro. Somos família por essência e tradição, e isso sempre ajudou todo mundo — avalia Carmen.
Caxiense convicta, relata a vez em que teve oportunidade de fazer a vida em Santa Catarina, mas decidiu ficar.
— Eu tive a chance de sair de Galópolis. Meu marido trabalhava em São Miguel do Oeste, alugou casa, tudo, para nós irmos morar lá e eu disse: de Galópolis não saio. E bati pé. Não iria — enfatiza.
E, em meio a risadas, ela é franca:
— Nunca mais saí, e pretendo morrer aqui — brinca.
Casada com seu Adoly Festugatto e mãe de Cláudia, Fábio e Andreia, todos moradores do bairro, Carmen revela o amor por Caxias.
— Eu sou caxiense. Gosto da nossa terra. Fria, mas acolhedora, muito acolhedora — finaliza com o sorriso insistente no rosto.
Domingos é a cara e a defesa do Pedancino
Aconteça o que acontecer, se algum dia você se deparar com o vendedor Domingos João Susin, jamais fale mal do bairro Pedancino, no extremo norte de Caxias do Sul. Caso contrário, a chance de ganhar um desafeto será grande. Morador, com a esposa Dagma, da última casa antes da RS-122, rodovia utilizada para deixar a cidade, e defensor do bairro onde nasceu há 56 anos, ele é todo elogios à comunidade que ajudou a melhorar e, com outros moradores, lutou para desenvolver.
Ex-presidente da Associação de Moradores do Bairro (Amob) e da Agremiação Social e Esportiva Pedancino (Asep), ainda é envolvido nas iniciativas e decisões locais e coleciona lutas que culminaram em diversas obras de estruturação. Uma das mais importantes foi o asfaltamento da avenida principal no final dos anos 1990. O esforço coletivo foi fundamental para sensibilizar a administração pública a iniciar o processo de pavimentação, que tornou-se contínuo até a atualidade.
— Na época, tínhamos dificuldades em trazer recursos para cá em função da disputa no então Orçamento Participativo. Mas com trabalho e pressão, conseguimos. Lembro de sustentar que éramos um dos bairros mais antigos e o que não tinha um metro sequer de asfalto. Felizmente, desde lá a realidade foi outra e agora quase todas as ruas são pavimentadas — cita Domingos.
Para o líder comunitário, o passar dos anos e todas as alterações que ocorreram foram positivas, o que tornou o Pedancino ainda mais acolhedor. Um exemplo é a permanência de quem forma família e não se muda.
— Eu sinto que o pessoal está voltando. Antes, as pessoas casavam e iam morar no Centro. Hoje, casam e constroem suas casas aqui. E isso certamente deve-se à estrutura ter crescido tanto — acredita.
Entre as principais melhorias dos últimos anos, estão o transporte coletivo, a coleta seletiva de lixo e a água encanada, que é relativamente recente em uma localidade que dependeu de poços artesianos até poucos anos atrás. Os loteamentos e condomínios que não param de ser implantados, responsáveis por uma nova configuração do cenário local, confirmam a tendência apontada por Domingos, valorizando os terrenos e corroborando para a ampliação no número de residências.
Menos gente, o mesmo espírito
O que diminuiu, contudo, é o envolvimento dos jovens nas atividades. Novas opções de lazer e oportunidades de entretenimento e também na vida profissional são algumas explicações. Apesar disso, Domingos afirma que o espírito permanece. O mesmo que foi tão importante para o desenvolvimento.
— É importante a gente viver em comunidade. Mesmo sendo bairro, a gente fala a comunidade do Pedancino porque é como nos sentimos. Todos trabalhando juntos para melhorar a vida de cada um. É como fizemos desde sempre e como tentamos continuar — confirma.
Bem mais perto de Flores da Cunha do que a maioria dos pontos de Caxias, muitos dos serviços e comércios procurados pelos moradores são da cidade vizinha, mas o que não diminui o amor e o pertencimento de todos.
— Nós somos caxienses. Temos um grande carinho por Flores da Cunha, mas aqui todo mundo se sente caxiense — garante Domingos.
A Forqueta do seu Saul
Quem passa desavisado pela Avenida Arthur Perottoni, a caminho dos trilhos e da igreja do bairro Forqueta, no limite oeste de Caxias do Sul, não imagina o quanto a localidade mudou nas últimas décadas e o quanto isso impactou na vida de uma das comunidades mais antigas e participativas da cidade. Contudo, perto dali, uma testemunha tem tudo registrado na memória e na saudade que sente dos tempos mais tranquilos. O aposentado Saul Cláudio Maschio, 75 anos, é a representação do envolvimento e de como pequenas ações do dia a dia escrevem os grandes momentos.
Ministro da eucaristia na igreja, responsável por sepultamentos, ex-maleiro dos Correios, quando recolhia as correspondências que chegavam pela Maria Fumaça, e nascido em Forqueta, Saul dedica-se cotidianamente ao trabalho voluntário. Mesmo nostálgico em relação à tranquilidade que ficou no passado, encara o progresso como um processo natural, e exalta as evoluções.
— É claro que a gente sente falta de ir dormir com as portas destrancadas, do silêncio, da segurança que era maior. Isso tudo acabou, mas muita coisa veio para melhor. Hoje temos mais trabalho aqui, mais oportunidades. As ruas são mais limpas, melhor cuidadas. E até o convívio evoluiu, com pessoas de vários lugares e culturas. A diversidade é muito mais respeitada agora do que antes, e isso é muito bom — afirma.
Quando as leis sanitárias ainda engatinhavam e eram os moradores da comunidade que realizavam pequenos procedimentos de saúde e até indicação de medicações, Saul foi o responsável por aplicar algumas injeções em doentes, sem contar a fase em que foi um dos primeiros barbeiros e cabeleireiros de Forqueta. Para ele, a construção de uma comunidade se faz aos poucos, nos pequenos gestos que podem mudar a vida de vizinhos e amigos.
— Tem muita gente que se preocupa com querer fazer coisas grandes. A gente tem de fazer pequenas coisas a todo momento que é possível — indica.
Entre as incontáveis situações em que auxiliou os residentes do bairro, conta o episódio em que foi abordado por um rapaz na rua lhe agradecendo pelo que tinha feito por ele anos atrás. Sem fazer ideia do que se tratava, o homem relatou que havia sido socorrido por Saul em um acidente, realizando os primeiros socorros.
— Para mim ficou assim, eu não lembrava mais, mas ele até hoje lembra e se torna grato porque eu fiz uma coisa boa — narra.
Uma centenária na família
A casa da família Maschio também é moradia de uma centenária vaidosa. Ao lado da esposa, Maria, Saul cuida da sogra Angélica, 101 anos. Mesmo precisando de atenção médica contínua, não abre mãos das unhas pintadas em um tom rosa bem vibrante.
_ Ela necessita da estrutura de um hospital em casa, e a gente tenta garantir para que tenha.
O casal tem três filhos, dois deles morando na Forqueta e trabalhando no comércio da família, enquanto o terceiro reside na Itália. Mais seis netos completam a prole.
Todo o envolvimento com as questões práticas da comunidade rende a Saul o reconhecimento por parte dos moradores. Questionado se vale a pena o esmero, o aposentado é direto.
— Aqui eu me sinto respeitado, valorizado. Caxias é o meu lugar — enfatiza.
São Luís da 6ª Légua, o lugar da família Costa
Quando se escuta que alguém mora na comunidade de São Luís da 6ª Légua, a impressão é de que o caminho até lá é longo. E por muito tempo a sensação realmente foi essa. Estradas de chão e o transporte dificultado faziam com que os moradores vivessem mais isolados, à margem do cotidiano movimentado da área central e bairros próximos. Contudo, os tempos de distanciamento ficaram no passado. Melhores ligações viárias e o desenvolvimento da infraestrutura permitem que, sem muito esforço, se fique frente à igreja e ao salão comunitário. Perto dali, o desenhista artístico aposentado Ivo Costa, 73 anos, mora com a esposa, Lúcia, e os inseparáveis Thor e Fiona, a dupla de cachorros que dá ainda mais vida ao local.
O casal criou seus dois filhos, Alex e Aladin, na mesma casa onde há mais de 30 anos testemunha o passo a passo que transformou o bairro de zona rural em conglomerado urbano, fechando o cercamento da cidade pela região Leste. E são muitos os momentos lembrados por seu Ivo que demonstram o poder da união da comunidade para tornar possível todo o crescimento. Solidariedade e integração como característica.
— Acabou sendo uma identidade nossa. Quem era de fora e vinha no salão da igreja era bem recebido. Ainda hoje eu cuido muito para, quando chega alguém que não é do grupo, apresentar e encaixar — garante.
A falta de energia elétrica e telefonia foram dificuldades enfrentadas e vencidas coletivamente. Ivo resgata o dia em que foi comunicado pela empresa que não poderia ser efetuada a instalação da luz devido à falta de numeral na residência. Para não perder a chance, inventou qualquer número, e foi bem sucedido. Depois, os vizinhos começaram a perguntar como ele havia conseguido. Dias se passaram e, uma a uma, as casas estavam com energia elétrica e um novo problema: numerais errados e inexistentes decorando as fachadas.
— Isso durou até pouco tempo, quando a prefeitura veio medir e consertar. Acabou virando uma história engraçada, mas que também representa nossa vontade de fazer um pelo outro — salienta.
A colonização italiana é uma das formas de explicar o espírito comunitário do bairro. Práticas antigas de dividir o pouco que se tinha e não deixar vizinhos e parentes passando necessidade serviram de alicerce para que as atuais famílias sejam muito unidas.
— A comunidade do São Luís mantém o que veio dos nossos antepassados, essa forma de se ajudar, e hoje continua assim _ diz.
O bairro do Quatrilho
Não foram somente carências e problemas que integraram os moradores de São Luís. O lazer é outro pano de fundo para que encontros aconteçam e grupos sejam formados. Desde 2014, funciona junto ao salão local a Confraria do Quatrilho, presidida por Ivo, e que hoje conta com cerca de 150 participantes. A modalidade ajuda a preservar a cultura do jogo de cartas tradicional entre os italianos que começaram o bairro, e é mais um pretexto para os vizinhos se manterem conectados. Todo o envolvimento em ações culturais e sociais por mais de 30 anos resumem o sentimento de acolhimento que Ivo nutre pela cidade. Natural de Nova Bassano, sente-se um caxiense genuíno, e grato por tudo que já viveu.
— Eu não saberia trocar de cidade. Caxias me recebeu, aqui eu conheci minha esposa, nasceram meus filhos, meus netos. Tudo de querido aconteceu em Caxias, então eu não trocaria por nada. E o bairro realizou vários dos meus desejos — ressalta o orgulhoso representante do São Luís.