A transferência de um aluno de uma universidade a outra fez Caxias do Sul ganhar, em 2006, mais um de tantos moradores obstinados em conquistar seu sonho. O baiano José Antônio de Oliveira, 71 anos, é natural de Rio Real, uma cidade a 200 quilômetros da capital Salvador. Quando criança, no sertão, já preferia roupas brancas para se vestir de forma semelhante àqueles que eram as figuras do seu desejo. Torna-se médico.
Mas, muito antes de dar os primeiros passos para uma formação acadêmica, José precisava sobreviver. Trabalhou na roça, casou-se e, por um problema de saúde, nunca pôde ter filhos. Foi só aos 50 anos que passou no vestibular para o curso de Enfermagem, que o levaria para mais perto do seu objetivo final.
— Perdi meus pais em 1964 (aos 13 anos) para a tuberculose. Fui criado pela minha avó, que pedia esmola. Infelizmente nasci em uma família pobre e não tive oportunidades — lembrou.
Em Feira de Santana, estudou por seis meses na Faculdade de Tecnologias e Ciências (FTC), até conseguir a desejada transferência para a Universidade de Caxias do Sul (UCS). O campus da maior cidade da Serra lhe brilhava os olhos. Era aqui que queria estudar e foi para cá que embarcou junto da esposa.
— Ela não aguentou o frio, não se adaptou e voltou. Nos separamos depois de 25 anos juntos, mas esse era meu sonho e que conquistei depois de 10 anos de estudo e muita ajuda da comunidade — contou.
A graduação veio em 2013, junto de uma dívida de R$ 6 mil com a instituição, paga por um amigo que prefere não identificar. Outro amigo ainda lhe presentearia com a festa de formatura.
— Tive muita ajuda. Antes disso, eu pagava com a venda de tapioca, que antigamente vendia, mas gaúcho não gosta de tapioca e parti para o churros. Tinha uma caixinha aqui, um dia um homem botou R$ 450 — contou.
No entanto, a trajetória do enfermeiro, conhecido por muitos como Tio da Tapioca, tem um episódio a ser lamentado. Por não conseguir emprego na área, nunca conseguiu exercer a profissão, mesmo com sua especialização em saúde da mulher.
— Não sei se é por ser velho ou nordestino, mas nunca consegui. Visava que, com o emprego na enfermagem, poderia financiar a Medicina. Mas, de 2012 até hoje, ninguém nunca me chamou e tem currículo meu em todos os hospitais da cidade — desabafou.
A notícia de que a Ulbra ofereceria 480 vagas para o curso de Medicina foi a oportunidade para o obstinado comerciante dar mais um passo na realização do seu sonho e com nota 503.1 no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ingressar finalmente na faculdade.
O curso, em Gravataí, será financiado da mesma forma que o levou a se tornar enfermeiro e, de acordo com Oliveira, os três primeiros meses já estão garantidos com a contribuição de mais um benevolente amigo.
— Levo os boletos para que sejam pagos. São R$ 10,8 mil já garantidos — contou.
Oliveira se matriculou na Ulbra nesta segunda-feira (15) em três disciplinas a serem cursadas a partir de segunda-feira (22). A logística de aulas todos os dias o obrigará a se mudar de Caxias do Sul e, para se manter na Região Metropolitana de Porto Alegre, diz contar com a ajuda do poder público, a ser visitado nesta quarta-feira (16).
— A casinha de churros deverá ser vendida, vou na Câmara de Vereadores e na prefeitura de Gravataí pedir auxílio para me estabelecer. Posso trocar meus serviços de enfermeiro pela hospedagem, já que não consegui emprego em Caxias — contou.
Com aproveitamento da grade curricular do curso já concluído de Enfermagem, Oliveira planeja se tornar médico em três anos e não pensa em se especializar.
— Eu tenho que dormir com o livro pendurado no pescoço, vou enfrentar uma turma jovem. Não quero ser mais do que ninguém, vou respeitar a todos, mas não aceitarei bullying. Minha vida está curta, eu sei, e ser Clínico Geral já está de bom tamanho.
Etarismo
O fato de Oliveira nunca ter sido contratado como enfermeiro é lamentado, mas compreendido pela presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul (Sergs), Claudia Franco. O trabalho braçal exigido para movimentar pacientes é citado por ela como principal argumento de quem precisa de uma mão de obra mais jovem.
— É louvável que ele tenha feito enfermagem, mas é uma categoria que já enfrenta dificuldades para conseguir emprego aos 50 anos, quanto mais com 60. Precisamos discutir o etarismo, as pessoas têm uma relação diferente com a terceira idade, mas, quando pensar numa faculdade, tem que pensar em uma que não necessite um nível de esforço físico, como a Enfermagem — afirmou.
Curso sob autorização provisória
As aulas a serem frequentadas por Oliveira estarão sob autorização provisória. O enfermeiro preenche uma das 480 vagas criadas recentemente nos municípios de Porto Alegre, Gravataí e São Jerônimo e que motivaram reclamações de entidades médicas.
Conselho Regional de Medicina (Cremers), Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) e Associação Médica do Rio Grande do Sul (Amrigs) entendem que o Estado já possui um número superior de médicos ao que é preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
A abertura dos cursos ocorreu após uma decisão da Justiça favorável à ampliação das vagas em Medicina oferecidas pela Ulbra, que já dispunha de uma graduação médica autorizada no município de Canoas, na Região Metropolitana.
Os cursos ofertados no RS vão oferecer três disciplinas teóricas. Por isso, o valor inicial do curso será abaixo da média para as mensalidades de graduação na área: R$ 3.700,44.