De quantas ferramentas é feita uma profissão? Para um sapateiro, que completa 86 anos neste domingo (16), todas cabem em uma pequena caixa. Pé de moleque, um pesado instrumento de ferro com três moldes de pés, torquês, martelo, faca e alguns pequenos pregos. Utensílios que, com muita cola e horas de lixadeira, ajudaram a fabricar e consertar milhares de sapatos em um cubículo da Rua Pinheiro Machado, no bairro São Pelegrino, em Caxias do Sul.
É ali, em uma sala de 35 metros quadrados, sentado em um banco baixo rodeado de calçados e sacolas que há 60 anos caxienses de todas as classes sociais encontram, atrás de um balcão, a figura carismática de Wilson Luis Sachett.
Sempre pronto a conversar e orgulhoso dos tantos clientes que atendeu até hoje, Sachett recebe na próxima quarta-feira (19) a distinção de Cidadão Emérito de Caxias do Sul, na Câmara de Vereadores.
Sapateiro desde os 11 anos de idade, Sachett acumula 75 anos no ofício que aprendeu com o tio, quando morava em Ana Rech. Na vida em comunidade era o responsável por tocar o sino da igreja às 5h. Aluno do Colégio Murialdo, foi ministro da Eucaristia, jogou futebol e fez teatro. O bairro onde nasceu foi deixado por ele só aos 18 anos, para cumprir o serviço militar obrigatório. Em Santa Maria, aperfeiçoou habilidades com o couro ao lidar com arreios na Infantaria.
— Foi lá que ouvi de um comandante uma frase que nunca esqueci e falo até hoje para os meus filhos. Que o impossível nasceu feito, o resto tudo é possível — conta Sachett.
Foi na potência da frase que ouvira que se agarrou a cada dificuldade que a vida lhe apresentou. A primeira grande delas, na década de 1960, após a dissolução da fábrica de calçados que abrira com a família no retorno do quartel.
— A gente fazia os solados de muitas botas de gaúcho, mas meu tio quis fechar e eu não sabia o que fazer. Até que me disseram que um italiano queria vender uma sapataria em São Pelegrino — recorda.
O italiano, segundo Sachett, chamava Benedetto Buzellato, estaria no Brasil fugido da máfia e cobrava cem contos de réis pelo ponto. Sem ter um tostão sequer, quanto mais cem, o então jovem sapateiro desempregado encontrou, o que hoje dedica à providência divina, o fiador da empreitada.
— Há anjos que aparecem na hora exata, e meu irmão que morava ao lado dos Capuchinhos e nunca ia para São Pelegrino me encontrou naquele dia na (avenida) Júlio. Contei a história para ele, que me disse que me daria o dinheiro. Foi o que determinou minha vida — lembra.
O anjo era Alcides Sachett, morto no ano passado, aos 97 anos, e com o empréstimo já há muito tempo quitado. De posse da sapataria, que viria a ser, inclusive, sua residência, Sachett usou dos catálogos deixados pelo italiano para fabricar sapatos de salto Luis XV, inspirados no rei da França, insatisfeito com seus 1m60cm.
Morou ali, num improvisado segundo andar nos fundos da sapataria por mais de uma década. Entre as ruas Coronel Flores e Feijó Júnior, a única do entorno com calçamento, viu a cidade crescer e se apaixonou pela área central de uma Caxias do Sul em ebulição dos anos 1970.
Por detrás do balcão, com o pé de moleque escorado no joelho, e sob suaves marteladas em solados, viu a Pinheiro Machado passar de uma rua de chão batido para uma movimentada artéria do trânsito caxiense.
— Tenho verdadeira paixão por essa cidade. Ia no Pastelão nos domingos e observava os prédios que subiam um pouco mais a cada semana. Sentia uma alegria tremenda em ver os andares ficando prontos e que indicavam que a cidade estava crescendo — conta.
Dos clientes, recorda de muitos, mas não esquece jamais da primeira. Era a filha do então vice-cônsul da Itália em Caxias do Sul, que chegou até ele ao procurar pelo antigo dono do ponto. Foi por confiança que deixou apenas um dos pares que carregava em uma sacola repleta de calçados.
— No outro dia ela veio buscar e disse que o italiano não fazia tão bem assim. Deixou o restante e ainda recomendou meus serviços para as amigas, que vieram na mesma semana — relembra.
No entanto foi uma em especial, filha de um padeiro seu amigo, que levou o coração de Sachett a querer se mudar dali e construir família. Com Maria Elizabeth Dannenhauer, que por anos trabalhou na recepção da Escola Cristóvão de Mendoza, construiu a casa onde mora até hoje no bairro Salgado Filho e que lhe presenteia todos os dias com uma boa vista da cidade. Lá, em 45 anos de casado, criou os dois filhos que hoje lhe renderam dois pequenos netos, de sete e três anos.
O hábito de olhar para cima enquanto caminha permanece, assim como o uso de vitaminas, que desde a adolescência o acompanham e ganham os méritos pela saúde em dia. Na chegada do inverno, Sachett vê o trabalho dobrar, o que não lhe incomoda. Afinal, cada par de sapato é um amigo que faz.
— Quando chega o frio lembram que estão com os sapatos furados e a demanda aumenta. Tem semanas que entram 100 pares, mas eu me viro. Se todo mundo pudesse ter a convivência que eu tive aqui... Tem pessoas que vão embora e voltam depois de 20 anos e se espantam em ainda me encontrar — conta.
E se depender de Sachett ainda o encontrarão, porque em casa é que ele não fica. A única chance de isso acontecer é em caso, ainda não considerado, de sapataria, clientes e ferramentas se mudarem todos juntos à própria residência.
A solenidade de entrega da distinção a Sachett está prevista para dia 19 de abril, às 19h, no plenário do Legislativo.