Um dos principais pensadores da atualidade, Leandro Karnal sempre propõe reflexões interessantes sobre o mundo e a humanidade. Não foi diferente nesta semana, ao palestrar para uma plateia de empresários em Caxias do Sul. Convidado pelo Sindicato das Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Caxias do Sul e Região (Simecs) para falar a empreendedores da região durante o Simecs Transforma, focou no futuro que já começou e no que isso implica: adaptar-se à realidade.
Antes do evento no UCS Teatro, concedeu entrevista exclusiva ao Pioneiro e Gaúcha Serra. Na conversa, falou sobre os avanços tecnológicos e como podemos usar as ferramentas a nosso favor:
— Nós precisamos pensar que as máquinas podem nos liberar para coisas mais importantes. Em toda a Europa, em todo o mundo desenvolvido já existe uma semana de trabalho mais curta. Já existe menos ênfase em horas de trabalho, mas é um trabalho mais inteligente, mais aplicado, mais desenvolvido ao que o ser humano pode dar e que é único, que é uma preocupação afetiva, ética.
Professor e historiador, Karnal também refletiu sobre a educação. Para ele, tanto escolas públicas quanto privadas estão no passado:
— O que ensinar que seja significativo para alunos que vão viver até o século 22? O que ensinar para as pessoas sendo que quase metade das profissões terá deixado de existir em breve? Que conhecimento terá validade daqui a 10 anos?
Confira trechos da entrevista abaixo:
O futuro começa hoje ou já começou?
Nós somos educados para pensar o futuro como uma coisa que viria na próxima geração, uma revolução tecnológica. As pessoas que, como eu, tem mais idade, pensavam assim. Onde eu estarei no ano 2000? Como será o mundo no ano 2000? Bem, já entramos no século 21, a inteligência artificial é uma realidade. O mercado das criptomoedas, a produção terceirizada, a dissolução das relações tradicionais são uma realidade há bastante tempo. Então, trata-se não mais de profetizar sobre um futuro que pode ocorrer, mas de aceitar que a tecnologia como base da produção, a inteligência administrativa, as preocupações ecológicas e a diversidades já são uma realidade que gera lucro ou provoca problemas para a empresa que não a segue. Então, primeiro tirar a ideia de futuro como algo que vai acontecer. Já está acontecendo. Quem não se deu conta disso, já está atrasado em relação a esse futuro.
O que nos reserva esse futuro que já está acontecendo? O que podemos esperar, principalmente, diante dos avanços tecnológicos, como ChatGPT, por exemplo?
Quando começou a Revolução Industrial, no século 18, as máquinas fizeram o trabalho de muitos trabalhadores e houve até uma reação contra isso, imaginando que as máquinas provocavam o desemprego. A questão técnica é irreversível sempre. Não adianta eu não gostar de alguma coisa tecnicamente porque ela vai continuar existindo. Há pessoas que dizem que preferem escrever a mão, outros dizem que não gostam, por exemplo, de fotos no celular, preferem máquinas fotográficas. A grande questão é que a minha opinião não detém a tecnologia. O grande desafio hoje é como fazer isso com ética, com preocupação de sustentabilidade porque, de fato, as tarefas mecânicas, repetitivas, braçais são ocupadas pelo algoritmo, pelos robôs, pela inteligência artificial. Agora, as preocupações éticas de envolvimento no meio ambiente, de equilíbrio com esse lado humano, equilíbrio com a sustentabilidade humana, essa é ainda feita por gestores, por pessoas que têm responsabilidade a esse respeito.
Eu diria, de um ponto de vista muito otimista, que toda revolução tecnológica provoca um aumento da síndrome de Frankenstein, ou seja, as máquinas vão nos destruir. Isso já tem mais de 200 anos, o romance Frankenstein tem quase 200, então, nós precisamos pensar que as máquinas podem nos liberar para coisas mais importantes. Em toda a Europa, em todo o mundo desenvolvido, já existe uma semana de trabalho mais curta. Já existe menos ênfase em horas de trabalho, mas é um trabalho mais inteligente, mais aplicado, mais desenvolvido ao que o ser humano pode dar e que é único, que é uma preocupação afetiva, ética e etc. Essas questões hoje são um grande desafio, porque um bom administrador há 50 anos precisava da máxima produtividade dos seus colaboradores, ter uma reserva, ter capital de giro, ter um bom sistema de propaganda, ter fornecedores bons e um mercado garantido.
Essas questões técnicas continuam, mas hoje ele vai ter que pensar no envolvimento social com o meio no qual a sua unidade fabril está inserida, ele vai ter que pensar que o departamento de pessoal virou RH, não é mais registro de carteira de trabalho e administração da CLT, mas é envolvimento, inclusive, humano e pessoal com o que está ocorrendo. Os desafios são muito maiores hoje. Hoje, um administrador industrial é também um antropólogo, é um psicólogo, é alguém com preocupações que há 50 anos simplesmente não existiam ou não eram tão relevantes. Mas não é para ser legal. É, inclusive, para continuar lucrando, porque as empresas não envolvidas com diversidade, combate ao racismo, combate ao preconceito perdem espaço, perdem valor agregado e se tornam banidas do mercado, são cancelados seus produtos. Eu preciso me preocupar com muito mais coisa. Por isso que cabe hoje a um gestor e a uma gestora de um mundo em transformação estar atento a essas mudanças, porque não é mais no meu tempo. Quem diz "no meu tempo" está derrotado, porque seu tempo é maio de 2023. Esse é o seu tempo.
Um dos assuntos que você domina é Shakespeare. De que forma ele pode estar no nosso presente e pode ser importante para o futuro?
A compreensão de uma obra clássica, seja Shakespeare, seja Cervantes, sejam os nossos Machado de Assis ou Clarice Lispector, dá uma sensibilidade humana. Você para de pensar em polos A e B, em um mundo emburrecido pela polarização. O grande drama da polarização política ideológica de hoje é o emburrecimento. As pessoas acham que a verdade está em um polo ou outro e isso é um absurdo extraordinário. O mundo é muito mais complexo do que A ou B. Shakespeare nos traz a toda a gama de um príncipe como Hamlet, que é o herói de uma peça que é o responsável pela morte da namorada, do pai da namorada, do irmão da namorada, da mãe, todos esses no seio de uma peça no qual o humano se torna muito mais difícil do que toda a capacidade de idealizar o humano.
Por isso que um bom empresário hoje lê muito, ele lê coisas da sua área, ele lê tendências de mercado, ele lê atualizações técnicas, mas não existe capacidade de pensar com sensibilidade se eu não ler obras clássicas de Machado, de Clarice Lispector, que tragam essa sensibilidade do momento, e parar de pensar em polos, em coisas extraordinárias ou de coisas colocadas apenas em A ou B, apenas nas pontas nos polos. Eu preciso pensar de forma complexa. A literatura, Shakespeare, entre outros, ajuda a pensar de forma complexa. Por isso que um bom administrador é um bom leitor, não erudito, não um intelectual produzindo análise de textos, mas já é alguém capaz de ler textos recentes sobre a sociedade do cansaço, sobre a sociedade líquida, sobre a nossa ascensão da complexidade como um elemento definidor da existência da sociedade. É difícil existir hoje, é muito mais difícil em qualquer aspecto.
Não há como falar em futuro sem falar em redes sociais. Às vezes, uma postagem não agrada e vejo que você sempre tem uma resposta na medida, de forma muito educada e com ironia, que é uma característica sua. Qual o segredo para conseguir responder assim e não criar um conflito?
Em primeiro lugar, se eu fico irritado com o que alguém disse, estou acusando o golpe, quer dizer, eu estou reconhecendo que aquela pessoa me atingiu. Então, tenho que analisar a minha reação. As pessoas recebem as mensagens de muitas maneiras, às vezes, até por equívoco e às vezes porque fazem parte de projetos de gabinetes de ódio e pessoas encarregadas de responder de forma agressiva, inclusive robôs treinados por essa agressividade. Trata de responder sem ter sido envenenado por aquilo, ou seja, sem que eu manifeste esse envenenamento. Eu tenho que entender que o ataque de alguém é um direito de uma pessoa. Isto pertence àquela pessoa e não a mim. Ou seja, se eu digo a você que você é brilhante, estúpido, que você é lindo, horrorosa, isso nada diz de você, isso diz da minha necessidade de te classificar e de te inserir em alguma caixinha que atende a uma dor minha.
Há uma questão minha e não sua. Você primeiro entende isto, que é uma opinião e essa opinião é um direito meu. Você responde quando é necessário. A ironia é uma forma de eu levar a pessoa a uma reflexão. O contra-ataque, a raiva, o processo de responder com agressividade mostra apenas que você foi atingido. Eu daria como conselho às pessoas: não dê esse gosto aos seus inimigos, não acuse isso, não fique furioso, porque a fúria é sinal de que você, de fato, está concordando com aquela crítica. Eu já disse várias vezes: veneno só funciona se for tomado. Eu tenho que aceitar, incorporar aquela crítica, ouvir aos outros e entender que aquele mundo, aquele julgamento ou, se preferir um termo mais popular, aquela energia pertence àquela pessoa. Não é seu. E aquela pessoa vai ter direito a isso, não importa que você publique. Você publica uma viagem, você está viajando e alguém vai dizer: "que maravilha, gostei muito, já estive aí" ou "como você metido, onde já se viu publicar viagem, tem brasileiros que não viajam". Aí, você pode responder: "é verdade, mas também tem brasileiros que não têm acesso a internet como você tem, tem brasileiros que não são alfabetizados como você é, aparentemente".
Então, sempre é o roteiro da vida alheia. Hoje, existe a função universal de ser coach da vida alheia. O que você devia fazer, o que você devia vestir, o que você devia falar. É o direito das pessoas, só que fala da dor delas. Em geral, quando eu não tenho vida própria, nem realizações e eu não tenho orgulho do que eu faço, eu posso fazer um diagnóstico muito negativo da minha existência, mas é muito mais fácil eu transferir isso para a existência dos outros. Então, o problema está em você. Isto é muito comum. É uma reação compreensível. Eu sempre procuro entender que aquela pessoa manifesta uma ferida dela e ao entender isto, diminui. A pessoa pode dizer uma verdade ou uma mentira. Se for verdade, por que você se irrita? Se for mentira, por que você se irrita? Qual é o sentido de uma irritação? Este é um grande desafio. Eu tento ser equilibrado e sábio a esse respeito.
Estamos falando de futuro e a gente vê que a educação, principalmente a pública, ainda parece estar no passado. Como a educação pode avançar?
Vou ser mais justo ainda. A educação pública tem menos recursos e paga, em geral, menos aos seus profissionais. Mas a educação, em geral, inclusive a privada, está no passado, mesmo que a escola seja linda, com professores bem pagos, com bibliotecas maravilhosas, um pátio lindo, com paisagismo, ela continua estando no passado, porque a educação está muito ocupada em ser uma espécie de obituário do conhecimento e isto é o que você precisa saber que era do passado.
Raramente, os educadores estão ocupados em ser parteiros de um novo mundo. A educação socrática através de perguntas, educação contraditória, utilização de imagens, construção de projetos, desafio criativo, isso acontece, mas não é o eixo nem das escolas ricas e sofisticadas nem das escolas simples e públicas das periferias. Apenas que as escolas ricas e sofisticadas vão estar submetidas a mais estímulos variados, mas continuamos com uma dúvida estrutural muito difícil pra nós professores: o que ensinar que seja significativo para alunos que vão viver até o século 22? O que ensinar para as pessoas sendo que quase metade das profissões terá deixado de existir em breve? Que conhecimento terá validade daqui a dez anos?
E aí eu tenho que mudar, fazer uma revolução interna que não existe mais formado como a geração do meu pai, que se formou em Direito na UFRGS, em Porto Alegre. Só existe formando. Ou seja, não existe alguém diplomado, só diplomando. O gerúndio é a obrigação, essa learning hability, habilidade de continuar estudando. O que eu tenho que ensinar para um aluno é uma metodologia de curiosidade e de busca e validação das informações, mas todo o sistema educacional está orientado — Ensino Fundamental e Médio, vestibular e faculdade — ao aprendizado de conceitos, uso da memória e educação para disciplina. Essa tradição atinge as empresas. A empresa faz uma entrevista e exige que a mulher vá vestida de tailleur, que não use joias espalhafatosa, que não use maquiagem muito forte, que seja absolutamente prudente. Aí contrata essa mulher, este homem que foi de terno preto e camisa branca e diz: agora sejam criativos.
Se eu selecionei pela não criatividade, se eu selecionei por serem comuns e por se adequarem ao modelo comum e agora eu quero que sejam protagonistas, empreendedores e incomuns. Nós temos que ou adequar a seleção ou adequar a expectativa para a seleção. Quando você faz uma linha de produção, que a pessoa deve ser comum, aguarde funcionários comuns, enquadrados. Agora, se você quer enfrentar a criatividade, isso vai revolucionar, inclusive, as relações hierárquicas, porque uma das bases da criatividade é poder dizer o que eu penso. Numa relação que você domina meu salário, meu cargo, dizer o que eu penso é fatal. Isso vai afetar a noção de hierarquia das empresas.
Eu peço pra pessoa dizer o que ela pensa, mas ela só pode dizer dentro de um limite, ela não pode ser crítica. Isto é avaliação de campo de concentração, é o nazista perguntando aos internados: vocês estão satisfeitos com o sistema? Todos vão dizer sim, muito bom, a comida é excelente, tratamento é ótimo. Nós ainda fazemos empresas hierárquicas absolutamente definidas de cima para baixo e exigimos desses funcionários criatividade, autonomia e pensar fora da caixa, a caixa que os selecionou e os moldou. É muito difícil. É difícil para professor, é difícil para empreendedores, é muito difícil isso.