As barreiras sociais podem ser amplificadas quando se é mulher e se mora na periferia. Muitas encaram preconceitos na busca por espaços ou precisam lidar com o machismo dentro do seu próprio lar. Para elas, a carga de viver nesses lugares é ainda mais pesada, pois nem sempre contam com uma rede de apoio para ajudar a cuidar dos filhos enquanto estudam ou trabalham. Para conseguir emprego também é mais difícil. Às vezes, é necessário até mudar de endereço para aumentar as chances de conquistar uma vaga. Há também a questão da violência, da falta de infraestrutura e da discriminação social e racial. São mães, irmãs e filhas que temem perder os pais, filhos, irmãos ou amigos para a violência.
Muitas delas, inclusive, são as únicas fontes de renda da casa. Apontamento que é confirmado por um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que mostrou que o percentual de domicílios brasileiros chefiados por mulheres passou de 25% em 1995 para 45% em 2018. A estimativa é que só entre 2014 e 2019, quase 10 milhões de mulheres assumiram o posto de gestora da casa. Apesar de não existir um dado local, essa também é a realidade de Caxias do Sul, onde inúmeras mulheres lutam por igualdade, respeito e melhores condições para criar os seus filhos.
Nesta quarta-feira (8), dia em que todas as mulheres são celebradas, apresentamos moradoras de quatro bairros em vulnerabilidade social de Caxias que buscam amplificar suas vozes nas comunidades em que vivem. São diferentes histórias, mas que lutam por um mesmo objetivo: estimular a reflexão e dar visibilidade sobre a dificuldade de ser mulher, principalmente na periferia.
As novas vozes
Com o grafite como aliado, Débora Vidaleches Nascimento, 25 anos, a irmã Isa Vidaleches, 16, e a amiga Muriel Jaci da Silva, 23, aproveitaram o projeto Mosaico na Quebrada, que alcançou horizontes além do bairro Euzébio Beltrão de Queiróz, e em fevereiro chegou ao Complexo Jardelino Ramos, para dar voz aos sonhos das mulheres que vivem nos becos e vielas. Juntas, grafitaram o muro do Centro Cultural Espírita Jardelino Ramos, na Avenida Barão do Santo Ângelo, para representar a força feminina da periferia. Foi a arte, inclusive, que uniu Débora e Muriel.
— Nasci e cresci aqui. A dificuldade sempre está no caminho da mulher por enfrentar situações machistas. Ser periférica é da minha essência, dentro da periferia convivemos com lutas que sempre trazem algum ensinamento, o resistir é um deles. Já enfrentei muitos preconceitos, porém nunca me vitimizei. O lugar de onde vim é motivo de orgulho sobre minhas reais raízes, ele se torna oportuno para mostrar que podemos ser e somos potência. Tem vivências e valores que só encontramos aqui. Procuramos referências, mas nós mesmas somos inspiradoras pela nossa história, seja ela qual for — destaca Débora, que pretende seguir com uma entrega cada vez melhor, empenhando-se em diversas possibilidades que o trabalho apresenta e focada em transformar vidas, assim como a dela.
Professora e artista, Muriel vive no São Vicente desde que nasceu. Para ela, a vivência na periferia só traz um real impacto quando precisam conviver fora da comunidade:
— Não tem um adjetivo que descreva exatamente o que é essa vivência aqui dentro, porque quando tu vive aqui, tu nasce e tu tá inserido nessa realidade, para ti é a vida que tu conhece, é a normalidade. A partir do momento que tu abre os teus olhos, tu começa a fazer parte do proletariado, a estar inserida em diferentes contextos sociais, tu vê que a tua vida é três vezes mais difícil, que tem que ser três vezes mais forte e mais guerreira para conseguir o mínimo.
Ela ressalta que tem que ter ânimo e vontade para levantar todos os dias e correr atrás do sustento e dos sonhos, sempre mostrando que é capaz.
— Tem que enfrentar o preconceito, as falas negativas, todos os olhares tortos, porque tu depende disso para ter um prato de comida amanhã. A gente não tem que romantizar o estar em vulnerabilidade social. Eu tenho muito orgulho da minha quebrada, porém, quem está inserido aqui, sabe o corre diário que a gente faz literalmente para poder sobreviver no caos. O preconceito surge indiferente do contexto social que estamos, principalmente, quando se é uma mulher negra.
A arte para transformar e inspirar
Alessandra Valquíria Santos, 27, cresceu na Zona da Antena, no bairro Jardim América. Desde dezembro de 2021 ela mora no bairro Cruzeiro, mas tem orgulho e amor pelo lugar de onde veio. Assistente de Ouvidoria e estudante de Serviço Social, ela encontrou no Hip Hop e na poesia uma maneira de expressar e mostrar para a sociedade os sonhos e lutas das mulheres. MC Valquíria, como também é conhecida, conta que teve uma infância fora do comum, porque sempre teve oportunidades e o apoio e incentivo dos pais para estudar, o que não é a realidade de todas as crianças e jovens da periferia. Quando não estava na escola, ficava com a avó e os irmãos mais velhos. Apesar das dificuldades e da falta de condições e políticas públicas no bairro, ela ressalta que o mais difícil mesmo é encarar o preconceito. Foram essas experiências que moldaram a maneira como ela passou a ver o mundo e se posicionar na luta por justiça social:
— Difícil mesmo é enfrentar o preconceito e estereótipos sobre o povo que mora aqui, sobre o local que crescemos e nos reconhecemos. Para as mulheres é mais difícil ainda, muitas são mães solos que vivem sem rede de apoio, têm dificuldade de conseguir emprego por não ter onde deixar os filhos, ou pelo próprio preconceito e falta de acesso ao estudo.
Ela acredita que ainda há muito o que avançar em relação à representatividade das mulheres, especialmente das negras e indígenas, que são as mais marginalizadas na sociedade. Para isso, é preciso lutar por mais espaços de poder e de decisão, e também por políticas públicas que garantam direitos e dignidade. Na música, MC Valquíria encontrou espaço para se expressar e incentivar outras mulheres. A primeira letra que compôs foi em parceria com a amiga Jeeh Bado, e se chama "Mistura":
— Transformei coisas que eu já escrevia sobre as minhas experiências, vivências e dores em uma rima e foi diferente de tudo que já tinha feito e sentido. Acredito que esse é o papel do Hip Hop, transformar realidades e também poder ser voz e forma de expressão para periferia e que haja cada vez mais espaço para mulheres na cena. Como em qualquer área, na arte e no Hip Hop, há um apagamento grande das mulheres e a cobrança para que a gente faça tudo com excelência, sem espaço para tentativa, erro e experimentação, o que é irreal e nos desumaniza muito. Mas como uma amiga chamada Rieta expressa nos grafites dela: “ Mulheres Resistem!” E a gente vai seguir fazendo arte e se movimentando — destaca.
Identidade e resistência
Moradora do Loteamento Campos da Serra, Maria Eduarda Noronha da Silva, 18, faz poesia de rua. Conhecida como Maria MC, ela escrevia versos para se expressar. Com o tempo, foi se descobrindo e com a ajuda do rapper Chiquinho Divilas percebeu que pode ser MC. A jovem compôs duas músicas, sendo que uma será lançada nesta quarta-feira e a outra na Jornada da Mulher Moderna, no dia 12 de março, a partir das 14h, na sede recreativa da Fundação Marcopolo. Lá, junto com a MC Valquíria, Maria irá mostrar versos e pensamentos na batida do Hip Hip. A jovem pretende cursar Publicidade e Propaganda e continuar escrevendo poesias para levar até a comunidade o que aprendeu.
— Temos que aumentar a representatividade da mulher na política, nos esportes, no mercado de trabalho e em cargos de liderança, pois isso pode ser uma forma de incentivo e inspiração para outras mulheres. Creio que posso ser uma referência positiva e ajudar. Quero continuar escrevendo poesias, e entrar para esse ramo da música, do rap, das letras, crescer minha página do Instagram e assim ajudar outras pessoas, independente do gênero e classe social, levar pra comunidade aquilo que aprendi, porque dentro da favela existem muitas pérolas a serem descobertas.
Mães solo
Carla Cinara Ravanei, 40, é mãe solo e vive no bairro Euzébio Beltrão de Queiroz. Ela também cita episódios de discriminação social e racial, e violência por viver na periferia. Carla era promotora de vendas em uma empresa do ramo alimentício. Depois de ser demitida, resolveu empreender e abrir uma casa de lanches.
— As mulheres periféricas são muitas vezes vistas pela sociedade como uma mulher qualquer, sem significado algum, mas mesmo assim conseguimos lutar contra essas barreiras. Somos líderes das comunidades, chefiamos nossos casas e trabalhamos fora, batendo de frente com os homens em busca de igualdade.
Ela ressalta que as mulheres são fortes e decididas por natureza, e quando têm filhos, são ainda mais determinadas para sustentar a família:
— Somos guerreiras e lutamos por nossas famílias e queremos respeito ao invés de sermos humilhadas. A voz da mulher tem que ser respeitada pelo que a mulher representa na sociedade, na família, na comunidade, no trabalho e no lugar onde ela queira estar.
Zaira Roberto Pereira, 72, vizinha de Carla, é da "velha guarda". Ela vive há 50 anos no Beltrão de Queiroz e vivenciou toda a transformação pela qual a comunidade passou. Divorciada e mãe de quatro filhos, hoje ela é aposentada e se dedica ao artesanato.
— Meus filhos ficavam na creche e trabalhei muito para sustentar eles. Trabalhei em casa de família, em limpeza de lojas e em metalúrgicas. Acho que naquela época mas era mais fácil arrumar emprego, porque agora tem que ter estudo e cursos para conseguir vagas.
"Duas vezes mais difícil"
A sociedade tem uma imagem preconceituosa da periferia e de quem vive nela. E mesmo que tanto os homens quanto as mulheres sofram com a falta de serviços públicos, como saúde, moradia e educação, quando a mulher é a chefe do lar, o sofrimento é ainda mais intenso.
— Ser mulher e ser moradora da periferia, acaba se tornando, pelo menos, duas vezes mais difícil, conforme, para além das minhas vivências e percepções, ouvi, em uma ocasião, em uma fala de um coletivo feminista. Para além de questões estruturais básicas existentes nas periferias, como os longos deslocamentos até regiões mais centrais da cidade, a insuficiência de serviços públicos que abrangem moradia, educação e saúde, é a mulher que muitas vezes concentra tarefas voltadas ao cuidado e ao sustento do lar, os cuidados e demais tarefas como o acompanhamento da vida escolar dos filhos (havendo ou não um companheiro) — afirma a pedagoga, doutora em educação e uma das idealizadoras do projeto Saboaria Popular Las Margaritas, Joanne Cristina Pedro.
Ela ressalta ainda a falta de acesso e de tempo para o lazer, dentre outras significativas questões, como a própria vulnerabilidade e insegurança ao correr riscos aumentados de violência ao transitar pelo espaço público. Esse também é o pensamento da pedagoga, especialista em educação e também idealizado do Las Margaritas, Andréa Wahlbrink.
— Para as mulheres da periferia esses abismos sociais são muito maiores porque tem a dificuldade de acesso a equipamentos públicos, de acesso a saúde de qualidade, a ter uma escola boa para poder deixar seus filhos. Muitas mulheres são as chefes de família e muitas vezes atuam em trabalhos precarizados, em subempregos, e são elas que levam renda para dentro de casa e encaram desafios para garantir as necessidades básicas de sobrevivência, que tem relação com esses equipamentos públicos e com a assistência social.
Ainda segundo ela, as mulheres periféricas acabam sendo vítimas não só do machismo, como de racismo e violência de gênero:
— Temos que pensar também na questão da segurança das mulheres. Tivemos agravamento enorme dos feminicídio e vivemos um momento delicado na América Latina, e especialmente, no Brasil de uma violência grande contra as mulheres, de um ódio de gênero muito grande.
Para ela, o dia 8 de março, é o momento de olhar para os saldos positivos que são resultado das lutas, e é preciso referendar essas conquistas e inspirar demais batalhas em busca de igualdade, melhores condições e uma sociedade fraterna e humana que coloque todos no mesmo lugar.