Nesta terça-feira (8), mais um episódio gerado por problemas financeiros da Visate causou transtornos à população de Caxias do Sul. Funcionários da concessionária decidiram paralisar ao receberem apenas 30% do salário de novembro. O impasse foi solucionado apenas no início da tarde, quando, por meio de um empréstimo bancário, a empresa garantiu o pagamento integral dos rendimentos.
Mesmo que esta paralisação tenha sido solucionada, o fato da Visate não ter recursos para o pagamento integral gera insegurança em um serviço emergencial para a população. Neste mês, um aporte federal deve ser usado para cobrir o empréstimo, mas, tendo em vista que a Visate, conforme a própria concessionária, deve R$ 3 milhões para uma fornecedora de óleo diesel e estaria devendo R$ 11 milhões ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), o que pode ocorrer nos próximos meses?
A situação financeira da Visate gera incertezas e ninguém na prefeitura e Câmara dos Vereadores têm segurança que este transtorno possa não se repetir. Os representantes dos poderes municipais tentam nova rodada de reuniões com a empresa para evitar este cenário novamente.
Comissão debate paralisação
Por volta das 14h15min de terça-feira (8), a Comissão do Desenvolvimento Urbano, presidida pelo vereador Adriano Bressan (PTB) discutiu a paralisação das atividades da Visate e os transtornos causados à população em reunião na Sala das Comissões Vereadora Geni Peteffi. Chamou a atenção de todos a falta de um representante da Visate no encontro. Compareceram na sessão o secretário de Trânsito de Caxias do Sul, Alfonso Willembring, o vice-presidente do Sindicato dos Rodoviários, Leandro Soares, e mais 12 vereadores. De acordo com Bressan, o problema do transporte público não está resolvido:
— Até quando isso vai acontecer? Vamos ser surpreendidos novamente em 30 ou 40 dias? A gente sabe que vem aí o período de férias, com o pagamento do 13º salário. Quais foram as ações da empresa para a sua saúde financeira?
O advogado do Sindicato dos Rodoviários, João Batista de Oliveira, afirmou que o problema foi, segundo alegação da empresa, a falta de dinheiro para pagar a folha e que o 13º dos trabalhadores está garantido.
Bressan confirma que a reunião discutiu também a possibilidade da contratação de uma empresa para fazer uma auditoria na Visate e quer explicações em novo encontro.
— Precisamos de uma auditoria até para passar segurança à comunidade que não vamos ser pegos de surpresa. Sem uma auditoria não temos como saber. Vamos voltar a nos reunir em dois ou três dias e definir um plano B — aponta o vereador.
Por meio de sua assessoria, a Visate disse que não compareceu na reunião porque a diretoria estava em tratativas na prefeitura para definir o aditivo feito no contrato e depois retomou as negociações para a liberação dos ônibus. Após o fim da paralisação, a empresa não se pronunciou sobre como deve proceder os novos pagamentos.
Do outro lado, a prefeitura afirma que continuará cobrando da Visate o cumprimento do contrato. O prefeito Adiló Didomenico explica que o departamento jurídico também avalia que medidas podem ser tomadas futuramente, em caso de novas paralisações.
— Hoje (ontem) autuamos a empresa e notificamos eles para voltar imediatamente a circular os ônibus porque eles têm o contrato, ganharam uma licitação e têm obrigação de prestar o serviço. Esse serviço é essencial. O jurídico está estudando outras medidas para os próximos dias em relação a atitude deles, porque é uma greve descabida e que pegou a todos de surpresa. Não fomos comunicados com antecedência, a comunidade não foi comunicada — declara o prefeito.
Uso do subsídio do Governo Federal
Conforme a Visate e o Sindicato dos Rodoviários, metade do valor de R$ 6.345.979,26 em subsídios para o transporte coletivo que o Governo Federal repassou para a prefeitura será utilizado para pagar o empréstimo bancário que a empresa adquiriu para pagar os salários de novembro dos funcionários. O diretor executivo da concessionária, Gustavo Marques dos Santos, diz que o aporte federal é essencial para equilibrar as contas.
Santos também contesta o motivo de, após 15 dias, este valor não ter sido repassado. O prefeito Adiló Didomenico argumenta que este valor só pode ser utilizado para garantir a gratuidade dos usuários com 65 anos ou mais. A Visate rebate que a emenda constitucional não determina tal custeio, e sim é uma ajuda emergencial às empresas de transporte coletivo, sem destino obrigatório e, portanto, já deveria ter sido repassado.
— Não. Esse valor é para uma ajuda emergencial às empresas. É para pagar esse combustível que está atrasado. É para pagar salário. Se tu pegar a emenda constitucional, esse aporte é para as concessionárias de maneira imediata. E está parado há 15 dias na prefeitura. É um valor que, no momento que entrou, começamos a contar. E que a prefeitura não repassou —afirma o diretor.
O prefeito responde que o dinheiro não ficou parado na conta da prefeitura. Didomenico conta que o município, bem como outras cidades que receberam o mesmo aporte, buscavam esclarecimentos sobre a prestação de contas deste valor. Tanto que locais como Porto Alegre também não tinham feito o repasse até então.
Após consulta com um especialista na área, a prefeitura fez um termo aditivo ao contrato, publicado no Diário Oficial desta terça. No aditivo, a gestão deixa claro que será feita uma prestação de contas ao Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) sobre o impacto que o subsídio trouxe na tarifa do transporte coletivo de Caxias.
A prefeitura também explica que o Ministério deu o prazo limite até dezembro para o repasse do aporte. A primeira parcela será repassada nesta quarta-feira (9) e a segunda, em dezembro. Mesmo que a Visate utilize a verba para a folha de pagamento, o aporte ainda entrará no cálculo tarifário do próximo ano.
— Eles têm que saber que esse dinheiro não é para problema de folha. Ele vai entrar no cálculo da próxima tarifa e nós vamos demonstrar claramente o benefício que trouxe no cálculo tarifário. É isso que eles têm que ter cuidado. Eles têm que saber que é uma espécie de adiantamento que vai compor a planilha da nova tarifa urbana de Caxias e de qualquer cidade que recebeu esse benefício — alerta o prefeito.
O Doutor em Direito e professor de direito constitucional da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Wilson Antônio Steinmetz, explica que esse tipo de subsídio tem uma finalidade específica: ser usado para as gratuidades no transporte coletivo. O professor acredita que não há dúvidas que este aporte financeiro está vinculado para o custeio da gratuidade para pessoas com mais de 65 anos. E cita três referências importantes no texto da emenda:
"(1º) Há referência expressa a essa vinculação na própria ementa da Emenda Constitucional; " [...] e institui auxílio para entes da Federação financiarem a gratuidade do transporte público".
(2º) A Emenda Constitucional 123/2022 vincula expressamente a utilização de aporte financeiro global de R$ 2,5 bilhões ao custeio da gratuidade dos transportes coletivos urbanos para pessoas com mais de 65 anos, direito que está previsto na Constituição Federal (art. 230, § 2º) e regulamentado pelo Estatuto da Pessoa Idosa.
(3º) O critério para cálculo do valor financeiro de suporte (ou de repasse) para cada município toma em consideração a proporção ou o número de pessoas com mais de 65 (sessenta e cinco) residentes no município".
Como as gratuidades surgem de lei federal, o Governo Federal fica responsável por repassar o valor para subsidiar o benefício. No cálculo, cada município recebe conforme critérios, como quais benefícios e para quantos usuários valem.
Prefeitura contratará empresa para levantamento de contas
A Visate justifica a falta de recursos para pagar a folha dos funcionários e outras dívidas com cobranças à prefeitura. Gustavo Marques dos Santos cobra um aporte de R$ 26 milhões do poder público, afirmando ser o desequilíbrio do caixa em 2021.
— Está faltando aportar no sistema R$ 26 milhões. (Um déficit que) a prefeitura reconhece. Só que, depois de 12 reuniões, não conseguiu chegar a um denominador. É muita burocracia, eles não conseguem dizer se devem ou não devem esse valor. A situação está agravando e afeta o sistema (de transporte). Imagina tirar um aporte desse, que era para ter entrado e não entrou — questiona o representante da concessionária.
Porém, o prefeito Adiló Didomenico relata que o município não deve nada para a empresa em relação ao atual contrato. Ainda de acordo com técnicos da prefeitura, o valor cobrado do aporte é menor que o declarado pela Visate. Como explica o prefeito, este recurso cobrado pela companhia é referente ao período do Governo Flávio Cassina, por conta dos meses de pandemia.
— Isso é uma forma de fazerem pressão de valores que estão pleiteando de governos anteriores, do período da pandemia e também a questão das ações que eles tinham contra o Governo Guerra. Especialmente essa do período Cassina, eles nos apresentaram uma conta de aproximadamente R$ 26 milhões. Os nossos técnicos não encontraram nada parecido com esse montante — afirma Didomenico.
As ações do período do Governo Guerra (2017-2019) são sobre a gestão da época não ter cumprido a tarifa que o Conselho Municipal de Trânsito e Transportes indicou e sobre a mesma administração não ter repassado nada de reajuste aprovado pelo mesmo conselho. Para calcular esses montantes cobrados pela Visate, a prefeitura contratará uma empresa nos próximos meses para realizar o levantamento de contas da concessionária. O prefeito esclarece que a ação é para ter segurança jurídica sobre qual é este valor.
— Do novo contrato, da nova licitação, a prefeitura não deve nada a eles. No prejuízo ocasionado pela pandemia fizemos o acerto com a participação do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Cejusc-TJRS), que foi os R$ 4 milhões que pagamos, que de forma errada ou desinformação, acham que demos dinheiro para a Visate. Mas nós pagamos um prejuízo em contrato, em função do baixo número de passageiros que circulou naqueles meses de comércio fechado e restrições da pandemia. Não devemos absolutamente nada. Da nova licitação, a empresa não tem nada a cobrar de nós — explica o prefeito.
O diretor da Visate também credita que a queda das contas se dá por conta da redução de passageiros no transporte público coletivo. De acordo com Santos, apenas 70% dos passageiros retornaram após o fim das restrições mais rigorosas da pandemia. O diretor executivo quer um aporte maior por parte do município, citando exemplos como Porto Alegre. O diretor também cita o aumento no valor de insumos, o que aumenta as despesas da empresa.
Relembre os principais embates entre Visate e prefeitura
O transporte público em Caxias foi essencial na campanha que elegeu o ex-prefeito Daniel Guerra, em 2016. Na época, Guerra prometeu mudar a empresa responsável pelo serviço e acabar com o monopólio. Logo após o impeachment, em dezembro de 2019, o governo que assumiu, sob comando de Flávio Cassina (PTB), suspendeu a licitação e prometeu lançar nova concorrência, o que não ocorreu. Coube ao Governo Adiló encaminhar o processo, que novamente a manteve a Visate como a prestadora do serviço.
:: Troca da gestão Alceu- Guerra
No último mês do governo Alceu Barbosa Velho (PDT), em dezembro de 2016, técnicos da Secretaria de Trânsito calcularam o valor da tarifa em R$ 4,01. A concessionária sugeria R$ 4,25. O Conselho Municipal de Trânsito e Transportes, em janeiro de 2017, aprovou a manutenção dos R$ 3,40 vigentes, valor sancionado por Guerra. A Visate ingressou com ação na Justiça contra o município em março daquele ano, alegando quebra de contrato, já que a decisão provocaria o desequilíbrio econômico-financeiro da empresa. Depois de uma guerra de liminares, a Justiça aceitou o reajuste parcial de R$ 3,70 sugerido pela Visate, que passou a valer em junho de 2017. O município recorreu da decisão.
:: Primeiros meses da gestão Guerra
Em abril de 2018, a Visate ajuizou nova ação contra o município, agora questionando a defasagem tarifária em anos anteriores. A concessionária alegou perdas de pelo menos R$ 22,5 milhões e pediu perícia judicial das planilhas do serviço. Em maio, a Visate contestou o valor da tarifa de 2018 em outra ação, que pedia o reajuste para R$ 4,30. O valor, inicialmente, foi acatado pela Justiça, mas o município recorreu. Em junho, em audiência de conciliação foi definida a tarifa de R$ 3,95. No acordo, a Visate desistiu da ação que discutia a tarifa, mas os processos referentes a 2017 e anos anteriores do contrato seguiram tramitando.
:: Duras críticas à gestão Guerra
Em março de 2019, o vereador Rafael Bueno (PDT) questionou o aumento tarifário do transporte coletivo nos últimos dois anos. O vereador também ressaltou na época que passava de R$ 70 milhões o passivo que o município teria de pagar por indenização à Visate. Bueno usou termos como “amadorismo” e acusou o prefeito de “estelionato eleitoral” por prometer fazer Lava Jato na Visate de forma imediata e acabar com monopólio. Em julho de 2019, a prefeitura deu prazo para a empresa consertar 65 ônibus da frota reprovados durante vistoria periódica. A Visate cumpriu a tempo, mas não evitou novas autuações da prefeitura, pela falta de cobradores nos ônibus.
:: Reajustes anuais
Em janeiro de 2020, após a cassação de Daniel Guerra, o vice-prefeito Edio Elói Frizzo(PSB) cogitava prorrogar o contrato com a Visate em seis meses. A essa altura, a empresa já havia perdido 39% de passageiros. Só em 2019, a Visate deixou de arrecadar R$ 5,9 milhões com o decréscimo de 1,4 milhão de usuários. Em fevereiro, o prefeito Flávio Cassina sancionou a tarifa a R$ 4,65, aumentando a passagem em R$ 0,40.
:: Problemas com a folha de pagamentos
Com a pandemia, apenas metade da folha do mês de março de 2020 foi paga aos funcionários da Visate no dia 6 de abril. Conforme a empresa, a folha de pagamento correspondia a 54% da receita total, sendo que grande parte era obtida na última semana do mês, quando as empresas compram vale-transporte para os funcionários. Com a parada da indústria, comércio e serviços, as compras não foram feitas.
Com as linhas reduzidas, ao menos 231 mil passageiros deixaram de utilizar o transporte coletivo em apenas três semanas. Em maio de 2020, por maioria, a Câmara de Vereadores de Caxias aprovou a prorrogação para mais 12 meses do contrato de concessão do transporte público à Visate.
Em outubro de 2020, por meio de nota oficial, a empresa informou que demitiu 243 trabalhadores. Esse número representa cerca de 25% do quadro de motoristas e cobradores.
:: Novo contrato, velhos problemas
Em abril de 2021, o prazo da concessão da Visate com a prefeitura passou para 15 anos, podendo ser prorrogado por mais 10. A empresa foi a única concorrente na licitação A proposta habilitada pela equipe de avaliação indicou uma tarifa de R$ 4,75.
Ainda em 2021, a Visate diminui em 50% a circulação alegando falta de recursos financeiros. Empresa e prefeitura acordaram um pagamento emergencial por conta do prejuízo do atual contrato. O valor foi de R$ 4 milhões e incontestável, não admitindo controvérsia.