Era março de 1994 e a comunidade de Veranópolis se preparava para assistir a mais uma missa de domingo. Mas naquele dia foi diferente: no lugar do tradicional sermão, conduzido pelo frei Manoel Baldissera, quem usou da palavra foi um médico japonês. Tratava-se de Emilio Hideyuki Moriguchi que recém havia concluído o pós-doutorado em Geriatria e Gerontologia nos EUA e tinha como missão descobrir os segredos da longevidade da pequena cidade da Serra. Após uma breve explicação, todos os idosos presentes na igreja concordaram em participar das pesquisas. Vinte e oito anos e alguns meses depois, parte dos inúmeros estudos e descobertas foram compilados no livro "As lições do projeto Veranópolis: estudos em envelhecimento, longevidade e qualidade de vida".
A obra foi lançada durante a Feira do Livro do município e guarda importantes informações sobre a população veranense. Mas a produção científica e literária não para por aí. Com quase três décadas de história, o Projeto Veranópolis já abrigou mais de 80 pesquisadores, rendeu parcerias com inúmeras instituições de Ensino Superior do país, além de gerar 29 dissertações de mestrado, 12 teses de doutorado, 30 artigos científicos e 60 trabalhos apresentados em congressos nacionais e internacionais.
Mas, afinal, o que deu a Veranópolis o reconhecimento de Terra da Longevidade? Quais os segredos de um envelhecimento saudável e bem-sucedido? Quais são as lições que podem ser aprendidas com os idosos da Serra? E o que está por vir? Antes de entrar nos detalhes da entrevista, o médico, pesquisador e um dos organizadores do livro adianta: trata-se de uma questão multifatorial, que vai desde hábitos alimentares até as relações sociais e familiares.
Abaixo, confira a entrevista completa com o médico radicado em Porto Alegre e que é considerado uma das maiores autoridades em geriatria no país.
Pioneiro: Como foi a escolha por Veranópolis? Por que resolveu aplicar o projeto na Serra?
Emilio Moriguchi: Eu me formei em 1982, faz 40 anos que sou médico. Sempre me interessei pela questão do envelhecimento, porque meu pai foi quem fundou a geriatria no Brasil (Emilio é filho de Yukio Moriguchi, fundador do Instituto de Geriatria e Gerontologia do Rio Grande do Sul). Aí fiz doutorado no Japão e pós-doutorado nos Estados Unidos e meus dois mentores me deram a missão de que, quando voltasse ao país, eu deveria encontrar o lugar mais longevo do Brasil e fazer estudos para saber o que era necessário para viver mais e melhor, com qualidade, por aqui. Fui buscar nos livros e descobri que o município mais longevo do Brasil, naquela época, conforme o último censo, era Veranópolis. Ao mesmo tempo, foi publicado na Revista Geográfica Universal uma matéria sobre os celeiros de longa vida no mundo e, num dos trechos, mencionava que existia uma cidade no Sul do Brasil que era um celeiro de longevidade. Com estas duas informações, eu fui para Veranópolis para cumprir minha missão.
O episódio da missa é bastante curioso. Poderia detalhar mais como foi esse contato inicial com os idosos de Veranópolis?
Chegando em Veranópolis, eu fui direto na prefeitura e expliquei que era geriatra e que queria fazer pesquisas sobre longevidade. O pessoal ficou muito surpreso, porque imagina, naquela época, 1994, uma cidade só de italianos e de repente chega um japonês. Como era uma questão de saúde, me encaminharam para o secretário. Para a minha surpresa, quando chego lá na sala, o secretário (atual prefeito de Veranópolis, Waldemar de Carli) tinha sido meu colega de residência no Hospital de Clínicas. Aí contei a história do meu projeto e ele me falou assim: 'Emilio, aqui no interior, quando a gente quer fazer alguma coisa que dê certo, temos que ter aceite da comunidade. E tem um hábito aqui que a missa da Matriz de domingo é onde se decidem as coisas mais importantes da cidade. Então, se tu quer realmente fazer isso, vai ter que ir na missa e pedir um espaço para o frei". Se aceitarem, te dou toda a força.
E deu certo?
Eu fui, expliquei para o frei e ele ainda brincou que o pessoal ia ficar curioso porque nunca tinham visto um japonês. Quando chegou a hora do sermão, o frei disse "olha pessoal, hoje vai ser um pouco diferente, tem um médico japonês aqui que quer fazer uma pesquisa para saber por que a gente vive mais". Expliquei os protocolos e o frei disse que quem aceitasse deveria ficar sentado, como estava. Quem tivesse algo contra, deveria se levantar e falar o motivo. Ficou um silêncio. Ninguém se levantou e o frei disse "olha doutor, já pode começar amanhã, se quiser". E aí começamos com os protocolos, aproveitei as férias de inverno e fiquei durante um mês coletando dados, que eram basicamente a rotina do idoso, desde a manhã, quando acordava, até de noite. Anotava tudo, dieta, atividades físicas e coletava um pouco da comida e da bebida que ingeriam... Fizemos isso com todos os idosos acima de 80 anos, na época. Foi assim que começou.
Diante de todos os estudos até aqui, quais são os fatores que tornam Veranópolis reconhecida pela longevidade?
Esta é um conclusão que não somente nós, que já fazemos pesquisas há 28 anos, como pessoas de outros países chegaram. Em primeiro lugar, os hábitos de vida saudáveis são importantes. Em Veranópolis, os idosos acima de 80 anos comiam coisas mais saudáveis. Naquela época (década de 1990), comiam coisas da própria casa, da própria horta; a carne, geralmente, era do frango criado solto... Ou seja, tudo natural, produzido pela própria família, sem agrotóxicos. Isso é muito importante, porque sabemos, está comprovado, que quanto mais industrializados comemos, mais doenças podemos ter. Segundo ponto é a atividade física. Eles não tinham carro naquela época, então, caminhavam muito. Outra coisa bastante importante era o repouso e o lazer. Os idosos tinham média de sono de sete horas por noite e mantinham o hábito de fazer uma sesta curta, de trinta minutos, depois do almoço. Além disso, outro fator importante, já comprovado para a longevidade e que ajuda a manter a saúde é o estilo de vida regrado, com horário para acordar, tomar café, trabalhar.
Mais algum aspecto além destes mencionados?
Sim. A saúde social é muito importante. Notamos que os idosos geralmente têm muitos amigos, as famílias são grandes. São fatores importantes para evitar a depressão. Além disso, outra coisa que descobrimos e que saiu um estudo na época também é que, quanto mais gerações vivem juntas na mesma casa, mais as pessoas são longevas. Por algum motivo, esta interação social, morando com netos e bisnetos, faz com que as células destas pessoas vivam mais. É um lado social que impacta biologicamente. E, por fim, a questão do lado espiritual. Os idosos longevos de Veranópolis têm sempre uma religião, que seguem princípios, com valores de referências, geralmente frequentam as missas nos fins de semana... Vários estudos no mundo todo têm mostrado que as pessoas que têm pratica coletiva, como missa ou culto, independentemente da religião, pelo menos uma vez na semana, são mais longevos, saudáveis e felizes. Portanto, são vários fatores que fazem com que as pessoas de Veranópolis vivam mais.
Doutor, estes resultados, hábitos, permanecem até hoje entre os idosos?
A situação mudou. Estatisticamente, hoje, Veranópolis não é a cidade mais longeva do Brasil. O que aconteceu é que muitos jovens foram morar em cidades maiores, como Caxias, Bento, Porto Alegre, então, as famílias ficaram menores e passaram a conviver menos. Também diminuiu muito a atividade física, principalmente com a pandemia, o que também tem impacto.
E sobre os jovens de Veranópolis hoje...
Temos trabalhado bastante a questão do envelhecimento saudável, com qualidade de vida. É preciso resgatar alguns valores que são possíveis resgatar, como evitar alimentos ultraprocessados, comer comida da forma mais natural possível. Além disso, estimular própria convivência familiar e o contato face a face com as pessoas. Hoje, muitos se isolam mesmo dentro de casa, passam muito tempo no celular. Estimular hábitos de lazer e espiritualidade... São pequenas coisas que podem fazer com que as pessoas de 30 anos sejam tão saudáveis quanto seus avós.
Por fim, quais os próximos passos do Projeto Veranópolis?
Vamos continuar seguindo os jovens e os idosos, como temos feito até agora. Temos dois estudos muito importantes atualmente sobre o Alzheimer, um projeto grande em parceria com universidades do Rio Grande do Sul e com uma universidade americana, para vermos os marcadores que podem indicar risco para o Alzheimer. E outro é sobre a doença de Parkinson.
Saiba mais
:: Conforme o Atlas do Desenvolvimento Humano (2013), a expectativa de vida em Veranópolis era de 75,3 anos em 2010. Os dados sobre envelhecimento no município devem ser atualizados a partir do Censo 2022 feito pelo IBGE.
:: No fim de 2016, o município da Serra se tornou oficialmente uma Cidade Amiga do Idoso, certificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
:: O livro As lições do projeto Veranópolis: estudos em envelhecimento, longevidade e qualidade de vida conta com 19 artigos que foram produzidos com a colaboração de 31 pesquisadores. A organização é de João Senger; Waleska Pessato Farenzena Fochesatto; Neide Maria Bruscato; Berenice Maria Werle e Emilio Moriguchi. Quem desejar adquirir a obra pode buscar junto ao Instituto Moriguchi, localizado anexo ao Hospital Comunitário São Peregrino Lazziozi, em Veranópolis.