Uma vez por mês, dezenas de moradores que vivem no entorno do Santuário de Caravaggio, em Farroupilha, abrem as portas de casa para uma visita mais do que especial: posicionada em uma estrutura de madeira e, quase sempre envolta em flores e tecidos delicados, a imagem de Nossa Senhora de Caravaggio representa uma bênção ao lar daqueles que têm fé e devoção. É a tradição das capelinhas, que atravessa gerações em muitas famílias católicas da Serra.
— Acredito que são três dimensões que envolvem as capelinhas. Primeiro, a dimensão de renovação de fé, é algo sagrado chegando na minha casa. É uma visita que traz alegria. O segundo aspecto é o caminho que renova a esperança. E, terceiro, se torna um gesto de visitação, de solidariedade. Muitas vezes as pessoas acabam vendo se há alguma necessidade, algum doente, se o vizinho precisa de ajuda. É um momento de conversar e ouvir o outro — avalia reitor do Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, padre Ricardo Fontana.
Dia a dia, o pequeno altar visita uma das moradias, percorrendo um roteiro estabelecido na vizinhança. A troca de casas costuma acontecer no entardecer, quando as famílias já estão recolhidas depois da rotina de trabalho. Coordenadora das 10 capelinhas da comunidade de Caravaggio e zeladora de uma das imagens, a costureira Helena Terezinha Viecele, 70 anos, lembra que antigamente a entrega da santinha ao vizinho representava um momento de oração conjunta entre as famílias. Um hábito que, segundo ela, se perdeu com o tempo.
Embora as preces compartilhadas com a vizinhança estejam cada vez mais raras diante das rotinas intensas e atarefadas, dona Helena garante que o costume de rezar o terço em família é mantido em sua casa, assim que a santinha chega. A capelinha também ganha um lugar especial no coração da casa — a cozinha — para ficar bem visível aos moradores. Zeladora desde 2003, ela considera sua função como uma missão:
— A gente procura ajudar a igreja, ajudar os padres. Como paroquiana, acho que é meu dever de participar. Eu me sinto muito bem fazendo essa função — afirma a coordenadora.
Na região de dona Helena, a santinha visita 20 famílias — todas são casas, uma vez que não há edifícios nas redondezas. Por vezes, por esquecimento ou alguma outra situação adversa, a imagem passa mais do que um dia na casa de cada família. Algo, contudo, que não prejudica o rito de fé entre a vizinhança. Só acaba alongando um pouco mais o período de peregrinação.
— Amanhã (sexta-feira, dia 20), por exemplo, é o dia que ela deveria estar na minha casa. Fui pesquisar e ainda faltam umas três famílias antes de mim. Acho que o pessoal está meio esquecido — brinca a voluntária.
Tradição que une gerações
Mesmo não sabendo precisar datas e nem mesmo como iniciou o costume no Brasil ou no Estado, o padre Ricardo Fontana lembra que a tradição das capelinhas remete à chegada dos imigrantes à região e a formação das comunidades da Serra.
— Normalmente, eles (imigrantes) tinham missas espaçadas, o padre não estava tão próximo. Então, a passagem da capelinha era uma forma de eles poderem estar próximos e solidários entre as famílias. Mesmo sem a missa, eles tinham a possibilidade de celebrar o terço juntos, em torno da capelinha. Depois, ainda confraternizavam, com um filó — enfatiza o reitor do Santuário de Caravaggio.
Uma das pessoas que ajuda a perpetuar o rito em Farroupilha é a vice-presidente da Apae do município, Fátima Galafassi Bet. Ela conta que aceitou o convite para ser zeladora e carrega a função há mais de 20 anos. Como o próprio nome diz, uma de suas missões é zelar, não só pelo pequeno altar de madeira, que vai de casa em casa, como também pela fé daqueles que necessitam — tanto que, na pandemia, com todos os protocolos, a imagem cuidada por ela não deixou de circular, visitando, principalmente, pessoas mais vulneráveis, pelo tempo que fosse necessário.
— Para mim, é uma missão muito importante. Considero Nossa Senhora de Caravaggio uma mãe, que nos protege e nos quer bem. Quando ela retorna para minha casa, faço toda uma limpeza, com cuidado, dou uma ajeitadinha no que é necessário. Mas o principal mesmo é o amor e o carinho que sentimos por ela — diz a zeladora.
Com a imagem, até na hora de dormir
É sobre um guardanapo enfeitado com bordados azuis, em uma mesinha de madeira, que a capelinha de Nossa Senhora de Caravaggio repousa na casa da aposentada Gema Nicoletto Pasa, 78 anos. Um cesto com lírios de tecido é estrategicamente posicionado aos pés da santa, uma singela homenagem àquela que já fez tanto pela moradora de Farroupilha.
A sala, contudo, é apenas um local de passagem na moradia, que fica a algumas quadras do Santuário. Gema gosta de ressaltar que à noite, quando se recolhe para dormir, é acompanhada pela santinha.
— Ela tem que ficar comigo, né? É uma mãe. Agora eu trouxe para cá, mas daqui a pouco ela vai para o quarto junto comigo, não deixo sozinha — enfatiza ela, que já foi zeladora na década de 1990, mas teve que abdicar da função para se dedicar à saúde dos familares.
Não é este, porém, o detalhe que mais chama a atenção na devoção dela por Caravaggio. Gema é a prova de que mesmo os costumes mais tradicionais podem acompanhar as evoluções da sociedade. Com dificuldade de locomoção e receosa pelas consequências da pandemia do coronavírus, a devota conta que há dois anos que não visita o Santuário. Mesmo assim, continua rezando e colocando sua fé em dia. Agora, entretanto, de uma maneira bem mais tecnológica e atual.
— Quando ela chega, eu assisto a missa das cinco e, depois, rezo o terço das seis pelo Face (Facebook do Santuário, o qual tem transmissões online) no tablet. Eu não tenho rádio aqui comigo — detalha Gema, enquanto mostra à reportagem seu equipamento de oração.
Fé inabalável
Mas, se hoje os pedidos da aposentada à santa se concentram pelo fim da guerra na Europa, há algumas décadas os maiores apelos foram pela saúde das filhas Graciela, 37, e Vanessa, 40. A vida e a saúde da primogênita, em seu primeiro ano de vida, inclusive, são atribuídas à Caravaggio.
— Eu já tive muitas graças de Nossa Senhora. A mais velha, quando pequena, tivemos que baixar o hospital e o médico me perguntou se ela não tinha engolido alguma bolinha de gude. Mas não era. Era uma doença respiratória. Aí me falaram que se ela não melhorasse, ia ter que passar por uma cirurgia, uma traqueostomia. Me desesperei, pensei que ela ia morrer na anestesia. Eu disse "vou colocar nas mãos da Nossa Senhora, ela vai me dar de volta a minha única filha". Eu pedi com muita fé para Ele (apontando para um quadro de Jesus Cristo) e para ela — conta Gema.
As orações e o otimismo da jovem mãe realmente foram potentes. A criança não precisou passar pelo procedimento e a família, no mesmo dia da alta hospitalar, foi a pé até o Santuário de Caravaggio em agradecimento à santa. As graças à família Pasa se estendem também para a caçula, Graciela. Gema recorda que ela, já adulta, em uma viagem de trabalho precisou buscar ajuda em um hospital e recebeu uma dose de penicilina, substância a qual é altamente alérgica. Tal erro poderia ter sido fatal:
— Ela ficou toda inchada. Depois de ver ela, eu não dormi nada naquela noite de tanta preocupação. Aí, eu pedi para Nossa Senhora me ajudar mais uma vez. Orei muito. A gente precisa ter fé, gratidão e esperança. Ser positivo e nunca negativo — aconselha a moradora de Farroupilha, detalhando que a filha mais nova recebeu o tratamento adequado e, dias depois, melhorou.